A editora Thomas Nelson Brasil acaba de lançar mais um livro da jornalista e escritora Marília de Camargo César, O Grito de Eva – A violência doméstica em lares cristãos. Ao longo das 208 páginas que compõem a obra, a autora expõe um dos maiores problemas sociais no Brasil, a da violência doméstica nos lares cristãos. Tendo em conta que estatísticas recentes referem que cerca de quarenta por cento das vítimas de violência doméstica no Brasil são evangélicas, este livro, além de expor essa duríssima realidade da violência contra as mulheres, pretende igualmente ser um alerta para os diversos líderes dessas igrejas.
O livro inicia-se com um breve enquadramento histórico acerca da cultura patriarcal e misógina ao longo destes quase dois mil anos de cristianismo e da nossa sociedade ocidental. Apesar de se terem observado progressos extraordinários na área da ciência, no direito, na educação e economia, infelizmente assiste-se ainda, em pleno século XXI, à predominância avassaladora do masculino sobre o feminino em todas as áreas sociais da vida humana, incluído no campo religioso.
Nos primeiros sete capítulos, onde a autora intercala testemunhos em primeira mão de mulheres violentadas com opiniões de psicólogos e de teólogos, expõem-se as bases do pensamento e ensino das muitas igrejas evangélicas que defendem o papel de autoridade do homem sobre as mulheres e que está na génese da violência exercida contra elas em nome de Deus. Nessas histórias contadas em primeira mão por muitas dessas mulheres, os casais são doutrinados em muitas das suas comunidades religiosas de que as mulheres se devem sujeitar aos seus maridos e que não devem exercer qualquer tipo de autoridade sobre eles. Também não deverão exercer qualquer cargo de liderança ou de ensino nas suas igrejas, visto que as mesmas, apesar de serem espiritualmente iguais, são intrinsecamente inferiores aos homens. Muitas destas doutrinas que adotam a visão teológica conhecida como complementarista, advêm de leituras literais de alguns textos bíblicos, como a Primeira Carta a Timóteo (1 Timóteo 2:13-14 e 1 Timóteo 2:14-15) e a Primeira Carta aos Coríntios (1 Coríntios 11:8-9), sendo muitos deles retirados do seu contexto histórico e cultural. Não é apenas mera coincidência que essas igrejas que adotam este tipo de leitura são vistas como sendo das mais conservadoras e fundamentalistas.
A violência doméstica e familiar exercida contra as mulheres, afirma a autora, pode-se manifestar de diferentes maneiras: física, psicológica, sexual, patrimonial e até moral. Por vezes, quando muitas destas mulheres procuram ajuda junto dos pastores, a resposta é quase sempre a mesma, a de lhes pedirem para orar pelos seus maridos a fim de que Deus lhes converta o coração, de se submeterem a eles em silêncio. A questão torna-se ainda mais complicada quando a possibilidade de divórcio nestas situações de violência doméstica é algo muitas vezes inegociável porque a união matrimonial, como instituição divina, jamais deverá ser posta em causa a não ser por questões de adultério.
Mesmo nestes cenários dramáticos, há mulheres que não abandonam os seus companheiros o que, como aponta a autora, se deve a uma “autoimagem fraca, crença de que seus maridos vão mudar, dificuldades económicas, a necessidade de apoio económico dos maridos para os filhos, dúvidas sobre se conseguem viver sozinhas, ver o divórcio como um estigma, além do facto de que é muito difícil para a mulher sozinha, com filhos para cuidar, encontrar um emprego”.
Na segunda parte da obra, a autora expõe outras leituras mais progressistas dos textos bíblicos, analisados agora à luz do método histórico-crítico, onde se deverá ter em conta o seu “sitz im leben”, ou seja, o seu contexto e cultura. As sagradas escrituras têm igualmente outros textos que falam da igualdade entre o homem e a mulher (Gálatas 3:28-29), algo que a secularização veio reforçar, ao atribuir à mulher direitos jurídicos iguais aos dos homens.
Outro ponto importante destacado neste livro é a necessidade de se construir uma masculinidade saudável e equilibrada. Os comportamentos violentos dos homens contra as mulheres revelam muitas vezes problemas causados por muitos distúrbios emocionais como a ansiedade, depressão, vício em pornografia e até insónia. Outros problemas, como o alcoolismo, consumo de drogas, vícios de jogo podem igualmente provocar episódios de violência doméstica. Deve observar-se que muitos destes agressores provêm de lares em que pais eram violentos, muitas vezes alcoólatras. Pais violentos criam muitas vezes filhos violentos. Importa, pois, que esses homens possam procurar ajuda adequada para que, conforme aponta a autora, retornem a um tipo saudável de masculinidade, e onde, após o reconhecimento de erros cometidos, desconstruam esses mitos de poder e controlo, entrando finalmente num relacionamento amoroso, compassivo e até de perdão com os seus cônjuges.
Apesar da obra, conforme já referido atrás, se focar essencialmente na experiência da violência doméstica das mulheres evangélicas brasileiras, aqui em Portugal, onde a religião católica é predominante, o fenómeno tem tido ainda alguma expressão. Dados publicados pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) relatam que a violência sobre as mulheres é ainda persistente com cerca de 75% dos casos relatados em 2020. Embora, através da leitura das estatísticas, não se consiga ainda correlacionar os casos de violência doméstica exercida com base em leituras legalistas dos textos bíblicos, eles existirão sem dúvida alguma, mesmo aqui em Portugal. Esta obra deverá ser obrigatoriamente uma referência para todos aqueles que têm responsabilidades de liderança nas suas comunidades religiosas, assim como para profissionais na área da psicologia e de aconselhamento matrimonial.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.
O Grito de Eva – A violência doméstica em lares Cristãos, de Marília de Camargo César. Edição: Thomas Nelson Brasil; junho de 2021