
Imagem: Skrik (O Grito), de Edvard Munch. Esta versão, pintada em 1910 em têmpera sobre cartão, foi roubada em 2004 do Museu Munch (Oslo, Noruega) e recuperada em 2006.
Quem não conhece a pintura a óleo de Edvard Munch, que é posta a par da Mona Lisa? Como é possível que uma tela inerte, fechada em si, no silêncio perpétuo, arraste o nosso olhar como quem é atraído pelo mais tremendo grito de solidão?
Quantas vezes na vida sentimos que somos um grito que perdeu a voz? Não haverá ninguém que nos ouça? Quem dera que todos nós pudéssemos encontrar alguém que nos fitasse nos olhos, escutasse o nosso grito e o deixasse morrer no calor da amizade!
Outras vezes, tanto gritamos que toda a gente olha para nós – ou para nos acudir ou para se alegrar connosco.
Pode ser importante soltar um brado de vez em quando, até para manter a saúde psicológica e a alegria saudavelmente infantil… E muita gente perde a vida por não conseguir bradar por socorro da maneira mais eficaz!
Na Bíblia, o próprio Deus, através dos profetas e de Jesus, grita connosco e bem: quer para avisar do perigo quer para se alegrar connosco. E é o primeiro a incitar-nos a clamar por ajuda e também a gritar de alegria.
Precisamos de gritar bem alto as injustiças em todo o mundo. Mas esses brados de nada valem se não pensamos no que deve ser feito e em como exigir a capacidade e honestidade que devem possuir aqueles que escolhemos para representar os nossos brados. Só assim poderemos avançar na grande marcha: em que gente rica, atletas, grandes artistas, intelectuais… se misturam com os coxos, com os cegos, com os que por amor “perdem” tempo, com as mães que transportam a vida dentro de si ou a seu colo… É na consciência, empatia e entreajuda ao longo deste caminhar, que cada qual se enriquece e fortifica com os talentos, humildade, prudência e força de todos os mais.
Perante Deus, pode haver alguém inútil? Seja qual for a idade ou o tipo de vida, cada ser humano, pelo mero facto de existir, “brada a Deus” – porque tem sede de mais. E por isso, Jesus se apropriou da tradição profética ao dirigir-se de modo especial aos que sentem na pele as injustiças da vida e que precisam de estar atentos a tudo o que possa ser um sinal de vida nova.
Se não somos sensíveis aos problemas dos outros, não nos admiremos que se propague a violência. Se não somos capazes de caminhar junto dos que podem menos como junto dos que podem mais, sem snobismo nem servilismo, não vamos a lado nenhum, por muita sensibilidade que publicitemos. Perdemos demasiado tempo a ter pena – em vez de acções e projectos que valham a pena.
O grito é, pois, um aviso: do problema que sentimos mas sobretudo da multiplicação social das variantes do que parecia ser apenas sofrimento individual. Se não nos habituamos a abrir os olhos à nossa volta, o grito fica estéril, sem eco eficaz. Reflectir sobre a dor, discutir sobre as razões e sentido da dor, e como é que os projectos políticos a podem e devem enquadrar – será, para a grande comunidade, o modo mais saudável de vida.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.