
“Esta é uma emigração de desespero, de sobrevivência, já não é para construir a casa na terra, é uma emigração de grande dureza onde as pessoas se reinventam, fazem tatuagens, arranjam outros maridos…”
Eu queria mesmo muito escrever – bem – sobre este filme infernal. Sim, o Inferno existe, não muito longe, não há muito tempo. E são muitos os que sofrem as suas penas. Não faltam retratos de situações semelhantes, entre nós.
Great Yarmouth: Provisional Figures, que começou por ser uma peça de teatro, é o filme sobre o qual queria mesmo muito escrever, realizado por Marco Martins. Diz ele numa entrevista ao Expresso (Revista E, 24 de Março de 2023): “Fui pela primeira vez a Great Yarmouth em 2016… Nessa altura tinha começado um grande afluxo de trabalhadores migrantes portugueses para Great Yarmouth, com a crise aberta em 2008…”
E mais adiante, quando o jornalista lhe pergunta: “Estamos num lugar mesmo ao lado do Inferno”, ele responde: “Aquela realidade é muito dura, com muita falta de amor, as relações pessoais são tensas, competitivas. A ideia romântica da nossa emigração para França nos anos 60 não tem nada a ver com esta. Esta é uma emigração de desespero, de sobrevivência, já não é para construir a casa na terra, é uma emigração de grande dureza onde as pessoas se reinventam, fazem tatuagens, arranjam outros maridos…” O filme, diz ele ainda, “é uma construção ficcional a partir daquilo a que eu não tenho acesso, os relatos de cada um, das pessoas que fui entrevistando, o espaço da fábrica onde não entrei, o cheiro do autocarro onde nunca andei. E é a minha visão sobre aquilo.”
“Um retrato brutal da imigração portuguesa em Inglaterra”, diz o anúncio do filme. “Mas Great Yarmouth: Provisional Figures (e cito agora a jornalista Inês Nadais na sua entrevista a Beatriz Batarda, no suplemento ípsilon, do jornal Público de 17 de Março de 2023), está muito para lá do documento que o slogan promocional promete. Filtradas e distorcidas pela gramática do cinema de terror que lhe pareceu pertinente para dar conta da saga destes mortos-vivos do capitalismo global, as marcas do realismo social britânico que constituem o referente cinéfilo e moral deste filme são já outra coisa.”
“A guiar-nos na descida aos infernos, uma portuguesa de meia-idade «triturada» pela experiência da imigração desqualificada, mas que na manhã seguinte às noites de line dancing e karaoke sonha com o futuro radioso em que acomodará velhinhos em hotéis com vista para o mar – já que o presente consiste em mandar compatriotas para a linha de montagem e ficar-lhes com os passaportes e boa parte do dinheiro.” (ípsilon)
E volto à entrevista da Revista E do Expresso, na qual, a propósito de Tânia (a portuguesa de meia-idade), quando o jornalista diz: “Great Yarmouth: Provisional Figures tem lá dentro Beatriz Batarda, a maior atriz portuguesa de cinema em atividade, num desempenho que pode ficar como o papel de uma vida. Um personagem peculiar, parece, mas não é, a vilã da história. Alguém que a gente abomina, mas de quem tem pena…”, o realizador responde: “É muito complexa, na verdade. Ao contrário do personagem principal do «São Jorge», que era um santo, eu quis construir uma personagem que não é santa, nem claramente uma vítima, é como um escravo que se torna capataz dos escravos. É alguém que quer ascender socialmente e que para o fazer explora outras pessoas como ela…É a vítima do sistema deformada pelo sistema. A deformação foi o mais importante que encontrei ali. É uma mulher, de alguma forma, desumanizada… não há nenhum personagem moralmente inatacável…”
Eu queria mesmo muito escrever – bem – sobre este filme infernal. Deixo estas palavras de outros, desejando que possam levar alguém a ver este filme. Fará bem uma descida aos infernos. Mais que não seja para encontrar como uma luz, ainda que não muito luminosa, a figura do ornitólogo Bob, a começar e a acabar o filme. Só ele consegue vislumbrar um mundo diferente.
Título original : Great Yarmouth: Provisional Figures
Género : Drama
Ano : 2022
Realização : Marco Martins
Elenco : Beatriz Batarda, Nuno Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa, Rita Cabaço, Hugo Bentes
País(es) : Portugal – França – Reino Unido
Duração : 1h 53m
M/14
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar). Este texto foi publicado originalmente na revista Mensageiro de Santo António.