Um país ainda a cicatrizar feridas e que espera por mudanças políticas significativas. A partir desta sexta-feira, o Iraque acolhe o Papa Francisco, que não deixará de apelar ao regresso dos muitos cristãos que deixaram as suas casas, e de dirigir uma palavra de alento aos iraquianos. O olhar do jornalista José Manuel Rosendo.
Podemos dizer que a visita do Papa ao Iraque, anunciada para esta sexta-feira, 5 de Março, será fortemente vigiada e segura, mas é de sublinhar a coragem de Francisco. É o primeiro Papa a visitar o Iraque, depois de João Paulo II ter revelado essa intenção, em 1999, mas as negociações com Saddam Hussein não chegaram a bom porto.
A visita do Papa Francisco tem, obviamente, a carga simbólica da visita de um líder católico a um país onde o Califado da organização Estado Islâmico se instalou e foi derrotado, sendo que esse Califado nada teve a ver com o Islão ou, dito de outra forma, foi obra de uma minoria criminosa e extremista, que apenas usou a religião. E é também uma visita a um país onde, segundo a ONG Hammourabi, vivem actualmente entre 300.000 a 400.000 cristãos, quando em 2003, antes da invasão, viviam 1.500.000. Muitos fugiram por causa da guerra civil, muitos outros por causa do Estado Islâmico.
Um dos objectivos assumidos pelo Papa é precisamente encorajar o regresso dos cristãos que fugiram do Iraque. Muitos sofreram o suficiente para temerem o regresso e o Iraque ainda vive uma enorme instabilidade. Muitos cristãos morreram durante a presença da organização Estado Islâmico. Houve cidades e templos quase totalmente destruídos.

Catedral da Imaculada Conceição, em Qaraqosh, Novembro de 2016, já depois da expulsão do Estado Islâmico. Foto © José Manuel Rosendo
Um país à espera de mudança
O Iraque regista neste momento a presença de várias milícias, algumas delas com ligações ao Irão, outras xiitas mais nacionalistas e ainda outras que são resquícios do Estado Islâmico. Há também uma revolta social e política que tem varrido o Iraque há já mais de um ano, embora com predominância no Sul do país. Aumentou o desemprego e a pobreza, os recursos do Estado caíram com a queda do preço do petróleo, trabalhadores do Estado e reformados chegam ao fim do mês sem salário ou reforma. A Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o Banco Mundial dizem que a taxa de pobreza saltou de 20% para 31,7%. A estimativa peca por defeito.
As manifestações têm-se sucedido desde Outubro de 2019 – cerca de 600 mortos e 30.000 feridos, segundo a AFP – e o campo político apresenta-se muito dividido, incluindo fortes divisões entre xiitas, num país marcado pelo clientelismo e em que os sucessivos governos vivem com a pressão do aliado Irão, dos Estados Unidos e da “rua” naturalmente descontente com o facto de um país rico em recursos não conseguir dar um nível de vida satisfatório à população.
Na Praça Tahrir (Praça da Libertação), em Bagdad, epicentro dos protestos, as tendas montadas durante meses, as fotografias dos mártires e as fotografias dos políticos considerados corruptos fizeram recordar outras Tahrir quando teve início a chamada Primavera Árabe. A exemplo do que acontece noutros países árabes, a “rua” pede uma renovação completa da classe política, fim da corrupção, serviços públicos e… emprego. A chamada “Revolução de Outubro” é um sinal do desespero das pessoas normais quando tudo à sua volta deixa de fazer sentido e não há nenhum sinal de mudança. Raptos e assassínios não têm faltado num Iraque instável e imprevisível.

Num outro nível e na sequência do assassinato do general Qassem Souleimani, em Janeiro de 2020, o Parlamento iraquiano chegou a votar a retirada das tropas norte-americanas no Iraque e agora espera para ver no que dá a eleição de Joe Biden, mesmo sabendo que Biden votou favoravelmente a invasão do Iraque em 2003 e que chegou a propor a divisão do Iraque em três regiões autónomas (xiita, sunita e curda). Nada do agrado da maioria xiita.
Depois há ainda a pandemia que, aliás, ajudou a quebrar os grandes protestos que estavam na rua. [Desde final de Janeiro, os números da pandemia cresceram de pouco menos de 700 novos casos diários para 4.690 nesta quarta, 3 de Março. A média dos últimos sete dias está nos 3.971. O Iraque teve até agora 13.458 vítimas mortais da doença.]
O chão que Francisco vai pisar
O roteiro da visita de quatro dias passa naturalmente por Bagdad, Ur (próximo de Nassíria, no sul, onde esteve a GNR no pós-invasão de 2003), Erbil (capital da região curda), Mossul (cidade no norte onde foi declarado o Califado) e Qaraqosh (nos arredores de Mossul), cidade mártir onde as igrejas foram parcialmente incendiadas e destruídas e até serviram de campo de tiro aos elementos do Estado Islâmico. Esse foi também um dos locais onde os cristãos tomaram a sua defesa nas próprias mãos e criaram milícias para combater os extremistas.

O programa da visita inclui Ur [sábado] porque terá sido a cidade berço das três religiões monoteístas e terá sido de Ur que Abraão saiu para seguir a palavra de Deus.

Também não surpreende que a visita termine em Erbil [domingo, antes do regresso a Bagdad para voltar a Roma]. Em Erbil, existe um grande bairro cristão e a presença do Papa será [uma forma de] agradecimento aos curdos por terem acolhido os cristãos fugidos do Estado Islâmico. Entre Bagdad e Erbil, a passagem por Mossul – o líder da Igreja Católica vai estar na cidade onde o Califado foi anunciado e acabou por cair. [Já se sabe que o Papa visitará o líder xiita Al Sistani, mas não] a Mesquita de Al Nuri, o local onde Abu Bakr al Baghdadi declarou o Califado e que já está a ser reconstruída pela UNESCO. Depois, a cerca de 30 quilómetros, a cidade de Qaraqosh, porque era a maior cidade cristã do Iraque até à chegada do Estado Islâmico.
O arcebispo siríaco católico de Mossul e Qaraqosh, monsenhor Petros Mouché, considera que a viajem de Francisco encoraja os cristãos a ficar, mas reconhece que poderá não ser suficiente para fazer regressar os que partiram. Alguns estão na região curda, a poucos quilómetros, com muito mais segurança. No dia de Natal, a agência France Presse deu conta da chegada a Qaraqosh de um autocarro com voluntários e caixas cheias de postais de boas-festas com mensagens escritas manualmente, vindas de vários pontos do Iraque: Najaf, Bagdad, Bassorá, Salaheddine e também Dohouk. Não duvidemos de que muitos iraquianos muçulmanos querem que os cristãos continuem a viver no Iraque, mas não podemos ignorar que também haverá alguns que assim não pensam.
É este Iraque que o Papa Francisco vai encontrar e, para além dos cristãos que o Papa pretende que regressem ao Iraque, muitos outros iraquianos merecem uma palavra que certamente ouvirão.
José Manuel Rosendo é jornalista da Antena 1 e tem feito reportagem em vários países do Médio Oriente; o texto foi publicado no início de Janeiro no blogue Meu Mundo Minha Aldeia, do qual é autor, e aqui apenas alterado com as actualizações assinaladas.