Há um jesuíta português nascido nos Açores que, há mais de quatro séculos, passou por Cabul. Agora, os seus sucessores deixam a cidade, pressionados pelos acontecimentos dos últimos dias no Afeganistão.

Giacomo Cantelli (1643-1695), mapa do noroeste da China, provavelmente baseado nos relatos de Bento de Goes.
Em 1602, o irmão jesuíta Bento de Goes, nascido 40 anos antes em Vila Franca do Campo (São Miguel, Açores) passou por Cabul, a caminho da China, naquela que foi uma das maiores expedições da história da humanidade. Mas agora, 439 anos depois, os dois jesuítas indianos que estavam na capital do Afeganistão aguardavam a sua vez de deixar a cidade, na sequência da tomada de poder pelos talibãs, domingo passado, dia 15.
Também quatro freiras das Missionárias da Caridade estão ainda no país e poderão voltar aos seus países, de acordo com fontes eclesiásticas citadas pela agência UCA News.
“Os nossos dois padres estão retidos no Afeganistão e aguardam a sua evacuação”, disse um padre jesuíta baseado em Nova Deli, a capital da Índia. “Também suspendemos a nossa missão no Afeganistão indefinidamente, uma vez que não temos a certeza de quando a situação irá melhorar.”
Os dois padres e uma das Missionárias da Caridade estão entre os muitos indianos à espera dos voos de evacuação do Governo da Índia para os retirar do país. O mesmo padre, que pediu para não ser identificado, acrescentou que os dois jesuítas estão “seguros e prontos para voar quando a Índia retomar o seu serviço de voo para evacuar os indianos retidos no Afeganistão”.
Uma responsável das Missionárias da Caridade em Calcutá (Índia) confirmou entretanto à UCA que as quatro religiosas, seguidoras de Madre Teresa de Calcutá, estão ainda no país, recusando-se a dar outros detalhes, para não colocar em risco a sua segurança.
“Sim, é verdade que as nossas quatro freiras estão a trabalhar na nossa missão afegã. Uma delas é indiana”, disse a responsável, sem adiantar a nacionalidade das outras.
As Missionárias da Caridade, que Teresa de Calcutá fundou em 1950, chegaram a Cabul em 2004, para fazer trabalho humanitário. Já os jesuítas tinham decidido, no mês passado, continuar a sua missão no Afeganistão. Em Julho, o padre Jerome Sequeira, chefe da missão no Afeganistão, afirmara, em entrevista à UCA, que os jesuítas continuariam “a acompanhar e a dar esperança ao povo sofredor da forma” que fosse possível. Adiantava, no entanto, que não tinha a certeza do que seria o futuro.
A história recente da presença dos jesuítas no país teve um percalço grave: em 2014, supostos combatentes talibãs raptaram o padre jesuíta Alexis Prem Kumar, enquanto ele visitava uma escola na província de Herat. Kumar seria libertado em Fevereiro de 2015.
Os jesuítas chegaram ao Afeganistão em 2004 para apoiar os esforços de reconstrução do país, já nessa altura devastado por duas décadas e meia de guerra civil e conflitos. Dois anos antes, o Papa João Paulo II tinha estabelecido uma missão dos jesuítas no país, que acabou a ajudar a formar mais de 300 jovens professores e a dar escola a mais de 25 mil rapazes e raparigas em quatro províncias. As meninas e adolescentes foram os principais beneficiários da missão num país onde, até 2001, os talibãs não permitiam que elas frequentassem a escola.
Um diário destruído

Selo português de 1962, evocativo dos 400 anos sobre o nascimento de Bento de Goes: uma das poucas memórias sobre o explorador jesuíta existentes no país. Foto: Direitos reservados.
O português Bento de Goes foi o segundo jesuíta a passar por Cabul. Um ano antes da sua estadia na capital afegã, o imperador mogol Akbar levara um padre jesuíta de Agra, no norte da Índia, até Cabul, recorda ainda a UCA News.
Bento de Goes, nascido no final de Julho de 1562, fez a viagem entre Goa e Suzhou, na China, tornando-se o primeiro ocidental a percorrer o caminho terrestre da Índia até à China, através da Ásia Central – e o primeiro a fazê-lo depois de Marco Polo. O seu objectivo, numa altura em que as relações comerciais entre a Ásia e a Europa aumentavam de intensidade, com a presença os portugueses e outros europeus no Extremo Oriente, era demonstrar que o reino de Cataio e a China eram um só.
Baptizado em Vila Franca do Campo em 9 de Agosto de 1562 com o nome de Luís Gonçalves, tornou-se soldado, sendo destacado para a Índia em 1583, pode ler-se na Wikipedia. Um ano depois, decidiria integrar a Companhia de Jesus. Em 1586 empreendeu já uma viagem pela Pérsia, Arábia, Baluchistão, Sri Lanka outros territórios e reinos. Só em 1588, de regresso a Goa, mudou o nome para Bento de Goes, mas as viagens tinham-lhe dado conhecimentos das culturas e tradições dos vários povos, bem como de línguas como o persa e o turco.
Seis anos depois, Bento de Goes faria parte da terceira expedição de jesuítas que, liderada pelo padre Jerónimo Xavier (sobrinho-neto de Francisco Xavier), estabeleceu contacto com a corte do Grão-Mogol, Akbar, o Grande, em Lahore (actual Paquistão). O imperador aceitou fazer tréguas com os portugueses.
Em 1602, Bento de Goes partiu finalmente de Goa, liderando um pequeno grupo, em busca do Grão-Cataio, onde existiriam comunidades cristãs nestorianas (que entendiam que as naturezas divina e humana de Cristo eram distintas). Seis mil quilómetros e quatro anos depois, e vários grandes obstáculos ultrapassados, Bento chegou a Suzhou, junto da Muralha da China, provando que Cataio e o Império Chinês eram uma única realidade, tal como a Khambalaik, de Marco Polo, era Pequim.
No percurso, Bento de Goes arriscou passar em territórios em conflitos, com uma grande profusão de reinos e tribos. Foi ele também o primeiro ocidental, lê-se ainda na mesma fonte, a atravessar a Ásia Central e cadeias montanhosas como os Pamires e o Caracorum ou o deserto de Gobi, no que alguns consideram uma odisseia não inferior à de Marco Polo.
Em Suzhou, Bento de Goes escreveu ao padre Matteo Ricci, em Pequim, a comunicar a doença de que entretanto padecia (talvez por ter sido atacado e ferido) e os poucos meios de subsistência que lhe restavam. Apesar de Matteo Ricci ter enviado o padre jesuíta chinês João Fernandes para o ajudar a ir para Pequim, este encontrou Bento de Goes à beira da morte, que acabou por acontecer em 11 de Abril de 1607.
O jesuíta escreveu um diário de viagem, destruído por supostos devedores pouco antes da sua morte, ainda de acordo com a entrada sobre Bento de Goes na Wikipedia. No entanto, João Fernandes e Isaac, um arménio que integrara a expedição, juntaram os fragmentos possíveis, entregando-os ao padre Ricci. Com a ajuda de Isaac e de João Fernandes, e de cartas que Bento enviara durante a viagem, tentou reconstituir a odisseia.
Vários livros publicados no estrangeiro ao longo do século XX e em Portugal nas décadas de 1950 e 60 descrevem a viagem de Goes. Em 1988, o também jesuíta Benjamim Videira Pires escreveu Portugal no Tecto do Mundo (ed. Instituto Cultural de Macau), onde refere a chegada dos jesuítas ao Tibete e conta também a odisseia de Bento de Goes que, no entanto, é pouco conhecida em Portugal.
(Sobre o livro, pode ver-se o vídeo seguinte)