
D. António Ribeiro em visita pastoral nas paróquias de Matacães e Monte Redondo, em 16 de Junho de 1996. Foto © DN/Leonardo Negrão, cedida pelo autor.
Jovem seminarista, António Ribeiro liderou um protesto dos colegas contra a má alimentação do seminário; mais tarde, seria vetado pelo governo ditatorial português para bispo de Beira mas, nomeado bispo auxiliar de Braga, seria depois escolhido para patriarca de Lisboa; foi colocar-se à porta da PIDE para exigir a libertação de padres presos pela polícia política do regime; um dia, encontrou-se com o primeiro-ministro Marcello Caetano para protestar pelo massacre que as tropas portuguesas tinham perpetrado em Wiriyamu (Moçambique).
Estes são alguns dos episódios e factos acrescentados na segunda edição de D. António Ribeiro – Patriarca de Lisboa, que será posta à venda na próxima terça-feira, dia 29. O livro, da autoria dos jornalistas José António Santos e Ricardo de Saavedra, é editado pela Paulinas, como forma de assinalar os 50 anos do início do ministério patriarcal de D. António Ribeiro em Lisboa, tal como a primeira edição, publicada em 1996, foi publicada a propósito dos 25 anos – e que se assinalam precisamente no dia em que o livro é posto à venda.
Além dos episódios referidos, esta nova edição conta ainda com um prefácio do actual patriarca, Manuel Clemente, um testemunho do antigo secretário do cardeal Ribeiro e a crónica de uma homenagem em Celorico de Basto, de onde o antigo patriarca era natural.
Pela importância do cardeal na história recente da vida do país e da Igreja Católica em Portugal, e do livro como registo da sua personalidade, o 7MARGENS reproduz a seguir, em exclusivo e na quase totalidade, o prefácio do actual patriarca e o testemunho do antigo secretário do cardeal Ribeiro, António Costa Pires.

O patriarca ao regressar de Roma, depois de ter sido nomeado cardeal: nas suas intervenções semanais na RTP, o padre Ribeiro “ligava Evangelho e vida com clareza e desassombro”. Foto: Direitos reservados
Um livro oportuno sobre uma vida a não esquecer
(Prefácio de D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa)
(…) É grande ganho para a nossa memória coletiva e agradecida. Retomar a biografia de D. António Ribeiro é bem mais de que simples exercício histórico, aliás muito meritório. É trazer-nos o exemplo de quem, numa situação particularmente difícil da sociedade e da Igreja em Portugal, desempenhou um papel central e estruturante nessas duas dimensões. O que fez então repercute-se ainda hoje no modo de entendermos e vivermos a relação Igreja-mundo, na melhor linha do Concílio Vaticano II. É uma memória criativa.
De 1928 a 1998, somaram-se décadas muito distintas entre si. No que ao País se refere, antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, as mudanças foram várias. O regime do 28 de Maio e a Concordata Portugal-Santa Sé de 1940 reconheceram o papel e a existência pública da Igreja Católica, permitindo-lhe, embora com limitações, a reorganização interna e a projeção apostólica que sobretudo se processaram desde o Concílio Plenário Português de 1926. Foi este o tempo de infância e juventude do futuro patriarca de Lisboa. Seguiu-se o do trágico conflito mundial (1939-1945), cujas consequências, em geral, mudariam profundamente a mentalidade e a política seguintes, na era pós-colonial e na «guerra fria» que durou até ao fim dos anos oitenta.
Entre nós, tudo andou mais devagar do que noutros espaços. Fosse como fosse, os anos sessenta e setenta pareceram muito distantes dos anteriores. E foi realmente assim, com repercussões na vida eclesial (Vaticano II) e também no País, até ao 25 de Abril de 1974. Esses anos, do pós-guerra em diante, foram marcantes na formação de D. António Ribeiro, quer nos estudos que fez em Roma, quer no que continuou a aprofundar no trabalho com diplomados em Lisboa, onde também lecionou.
Nos anos sessenta teve uma presença semanal da RTP, que seguíamos com muito interesse e proveito, ligando Evangelho e vida com clareza e desassombro. Conheceu diretamente o laicado de formação superior, em boa parte provindo da Ação Católica, que também estaria presente no Portugal de Abril. Consolidou convicções e modos de agir que depois marcaram o seu ministério episcopal. Já Patriarca, escreveria em 1973 a Carta Pastoral do Episcopado no décimo aniversário da Encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, apresentando os pontos essenciais que o Portugal democrático quis implantar depois, respeitantes a direitos humanos e políticos que a sociedade deve manter e o Estado salvaguardar.
Quando em 1971 o papa Paulo VI o nomeara Patriarca de Lisboa, para suceder ao Cardeal Cerejeira, reconhecia e confirmava uma personalidade eclesial que, ainda jovem (43 anos), já estava amadurecida e comprovada. A pessoa de que a Igreja e a sociedade precisavam então e nos anos seguintes.

Em 1971, o Papa Paulo VI nomeou António Ribeiro para patriarca de Lisboa, confirmando “uma personalidade eclesial que, ainda jovem (43 anos), já estava amadurecida e comprovada”. Foto: Direitos reservados.
A Revolução de Abril, que paulatinamente se foi consolidando, no sentido duma sociedade realmente democrática e solidária, precisou de ter esteios firmes e seguros, para não perder nalgum excesso o que só pode equilibrar-se no conjunto. Conjunto de princípios que precisam de intérpretes à altura, como no âmbito eclesial e não só, foi D. António Ribeiro. Este livro dá-nos boa conta disso mesmo, em vários episódios e momentos, incluindo testemunhos diretos e considerações ajustadas.
Muitas vezes ouvi classificar o Cardeal Ribeiro como homem «prudente». Na verdade, ouvia e lia muito, falava quando achava preciso, sempre claro e mesmo intrépido, aparecia onde tinha de aparecer. Em tempos que já eram de muita pressão mediática, resistia ao figurar por figurar e ao falar por falar. Também por isso a sua intervenção ganhava peso, dentro e fora do espaço eclesial.
Concordo com a nota da «prudência», especialmente referida à sua pessoa. Com a definição que o Catecismo da Igreja Católica (n. 1806) apresenta: «A prudência é a virtude que dispõe a razão prática a discernir, em qualquer circunstância o nosso verdadeiro bem e a escolher os justos meios de o atingir. […] É chamada “auriga virtutum” [condutor das virtudes], porque conduz as outras virtudes, indicando-lhes peso e medida. É a prudência que guia imediatamente o juízo da consciência. O homem prudente decide e ordena a sua conduta segundo este juízo.»
Por experiência própria e alheia, confirmo que no Cardeal Ribeiro esta virtude era efetivamente central e permanente. Tanto no acompanhamento do clero e do laicado como na planificação pastoral e nas decisões concretas sobre o que fazer ou não. Tanto no âmbito interno da Igreja como na relação com a sociedade e o Estado. Era um exemplo vivo de prudência e sensatez. Todos ganhámos quando o seguimos, pelo que era e nos fazia ser. (…)
Homem de Deus, promotor da liberdade, da esperança e da paz
(Testemunho de António Costa Pires, secretário particular de D. António Ribeiro de 1967 a 1974)

No edifício do Patriarcado, então no Campo dos Mártires da Pátria, em 1996: “Era o homem através do qual Deus se fazia próximo de todos”. Foto © DN/Leonardo negrão, cedida pelo autor.
Foi aos meus 27 anos de idade que conheci D. António Ribeiro quando este foi sagrado Bispo, na Catedral Primacial de Braga, em 17 de Setembro de 1967. (…)
Ele foi um Pastor, tanto em Braga, como em Lisboa, que nunca teve medo de defender, de sofrer e de dar a vida pelo seu rebanho. Homem apaixonado por Deus, que dele falava não só com a sua doutrinação e experiência de doutor em Teologia, mas como alguém que tinha feito a experiência do Amor de Deus. D. António era o homem através do qual Deus se fazia próximo de todos, não só de quantos se aproximavam dele mas ainda daqueles que, à distância, o admiravam e escutavam!
Por ter de falar «de memória» de D. António, temo, ainda que sem má-fé, mentir ou omitir factos. Sinto, pois, um grande orgulho e privilégio de ter trabalhado com D. António Ribeiro na qualidade de seu secretário pessoal.
Vou cingir-me a tecer algumas considerações sobre o Senhor Patriarca como personalidade que marcou a sociedade portuguesa mesmo antes da revolução de Abril, pelo seu posicionamento frontal e progressista até nas questões sociais que afectavam a população portuguesa. Convivi de perto com o Senhor D. António, tendo notado a sua constante preocupação pelos problemas do povo, problemas que afligiam as populações, as injustiças que se cometiam contra os direitos fundamentais da pessoa humana, o não investimento na educação, na saúde, na habitação; o desrespeito pelos direitos de quem trabalha e também pela brutal ofensa cometida aos presos políticos por parte da polícia PIDE/DGS.
Estes e outros problemas foram por ele mencionados, em várias comunicações públicas, como nas mensagens natalícias anualmente transmitidas pela TV. Sou testemunha de que, várias vezes, apresentou, pessoalmente, estas e outras preocupações ao então Presidente do Conselho, Professor Marcelo Caetano. Quem não se recorda das célebres homilias proferidas pelo Bispo de Lisboa, nas celebrações eucarísticas, tanto da Vigília pela Paz na noite de 31 de Dezembro de 1972, como do primeiro dia de cada ano, Dia Mundial da Paz, nos já longínquos anos de 1972-1974? Enchiam-se as igrejas e a Catedral e naquelas enchentes, elementos da polícia secreta do regime também estavam presentes, registando o sentido e o alcance de cada frase do celebrante presidente e incomodando-se ante o entusiasmo com que o povo as sorvia atentamente. Sem dúvida, viveram-se naqueles anos tempos muito difíceis e de conflito latente.

Com o Papa João Paulo I, no início do ministério deste, em Roma: “Foi sobretudo um homem da Igreja.” Foto: Direitos reservados.
O Senhor Patriarca foi sobretudo um homem da Igreja, tendo-a amado até à sua partida para a Casa do Pai, em grande sofrimento. (…)
Ele, na qualidade de Bispo Auxiliar para o Apostolado dos Leigos, bem como alguns outros Bispos, foi artífice de movimentos de renovação que procuravam o seu espaço eclesial (bíblico, litúrgico, laical, teológico, ecuménico, pastoral, catequético, presbiteral…). Na verdade, estes movimentos, canalizando os seus sonhos e anseios de mudança, encontraram na figura de dois Papas, João XXIII e Paulo VI, um ouvido atento aos seus clamores. O Concílio foi o culminar de uma vontade enorme de mudanças, de um novo respiro para a Igreja, uma enorme possibilidade de diálogo com o mundo.
Nesse sentido, e com uma constante preocupação, o Senhor Cardeal-Patriarca teve sempre como principais metas ajudar a Igreja a fazer uma leitura permanente dos sinais dos tempos, criar estratégias que facilitassem as mudanças exigidas e renovar continuamente a mensagem, os métodos e os instrumentos para alcançar a mudança desejada. D. António Ribeiro não foi apenas adepto, mas propagador dessas teses, à época, muito inovadoras.
O Concílio Vaticano II revolucionou a Igreja e foi um marco na relação da Igreja consigo mesma e com o mundo.
A Igreja passou a conviver com temas que lhe eram estranhos ou distantes: colegialidade, ministerialidade (LG 31-37), salvação fora da Igreja (LG 16), ecumenismo, diálogo inter-religioso, Igreja pobre e para os pobres, missionariedade, entre outros. Esta convicção apoiada nos citados documentos, ajudou a D. António Ribeiro, bem como a outros bispos, no seu corajoso empenho de formar cristãos e comunidades adultas responsáveis pela própria caminhada.

Com o Papa João Paulo II: Com o Concílio Vaticano II, a Igreja “passou a conviver com temas que lhe eram estranhos ou distantes”. Foto: Direitos reservados.
Como não emocionarmo-nos ao ler as suas homilias, discursos e conferências, muito particularmente nos tempos que se seguiram à revolução dos cravos e imaginar o impacto que produziam no povo e nas autoridades daquela época? Como não constatar o quanto foi importante a sua postura para o surgimento de uma Igreja com rosto mais «conciliar»? Como não recordar a sua serenidade e a forma exemplar e diplomática com que soube resolver as situações graves e as relações entre a Igreja e o Conselho de Revolução/governo, na época difícil e conturbada da revolução de Abril? D. António foi o Homem certo, no momento certo, para fazer frente e resolver, com o seu especial jeito e bondade inexcedível, as dificuldades do momento que se colocavam à sociedade e à Igreja portuguesa. Discreto na abertura aos graves problemas de então, mostrou sempre grande inteligência e clareza, misturada com uma excecional ponderação, prudência e autoridade na defesa da liberdade religiosa, da solidariedade e da justiça.
Homem de Deus, foi inflexível na defesa dos valores e princípios eternos da Igreja que prometeu servir até à morte. Como Bispo e cidadão exemplar foi admirável o seu contributo para a pacificação da sociedade no seu tempo e para a cooperação entre a Igreja e o Estado português.
Obrigado, Senhor Patriarca, pelo grandioso e extraordinário exemplo e testemunho que deixou entre nós, mas que agora parece estar um pouco esquecido.
Que a vida e o exemplo deste excelso Pastor seja fonte de inspiração e encorajamento. Sejamos dignos de toda a sua herança teológica, pastoral e espiritual.