Há 50 anos, em Moçambique

O massacre de Wiriamu: silêncio e denúncia na Igreja Católica

| 13 Dez 2022

Mapa de Moçambique, assinalando Mucumbura onde em 1971 as tropas portuguesas assassinaram populações antes do massacre de Wiriamu, localidade entretanto desaparecida, mas situada na região. Reproduzido do Google Maps.

Na manhã de 16 de dezembro de 1972 [faz sexta-feira 50 anos] ocorreu um massacre em Tete, no Norte de Moçambique, no contexto de uma guerra colonial que durava há seis anos, e da Operação Marosca, realizada pela tropa portuguesa e pela DGS (Direção Geral de Segurança, polícia política do regime). Nenhum guerrilheiro da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) foi identificado entre as 385 vítimas mortais do massacre, cerca de um terço dos 1350 habitantes das cinco aldeias alvo de atrocidades.

O massacre ocorreu em Wiriamu, uma região percorrida pelo rio Zambeze que na época era chamada por missionários católicos como “a terra esquecida de Deus”. A opinião pública internacional ficou ao corrente do que acontecera passados 206 dias, a 10 de julho de 1973, com a publicação no The London Times de um relato dos acontecimentos pelo padre Adrian Hastings, um antigo missionário da sociedade dos Padres Brancos no Uganda. As consequências políticas da publicação da notícia, que coincidiu com uma visita de Marcelo Caetano ao Reino Unido, assinalando os 600 anos da aliança luso-britânica, seriam muito graves para o Governo português. A imagem internacional do Estado Novo foi abalada e a ideia de que não havia uma solução política para a guerra saiu reforçada, apesar do governo ter lançado dúvidas sobre a veracidade das notícias.

Na perspetiva das relações entre o Estado Novo e a Igreja Católica, o “escândalo” em torno de Wiriamu veio acentuar conflitos já visíveis e fraturas no interior da própria dinâmica missionária católica. O protagonismo do padre Adrian Hastings visava encobrir o trabalho de religiosos no terreno e sujeitos a represálias: o primeiro relato sobre Wiriamu foi escrito, com o apoio de duas freiras, pelo padre Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese da Beira, que já estivera preso pela PIDE/DGS. Os padres de Burgos desempenharam um papel relevante na compilação de relatórios sobre o massacre.

 

Os caminhos da violência e dos testemunhos proféticos

Adrian Hastings, Guerra Colonial, Wiriamu, Moçambique

O padre Adrian Hastings, missionário católico que em 1973 denunciou o massacre de Wiriamu, Moçambique, a depor nas Nações Unidas. Foto: Direitos reservados

A relevância do massacre de Wiriamu esteve na escala da violência e no impacto mediático internacional que alcançou. Quer a violência em massa praticada pelas forças armadas portuguesas e pela DGS, quer o método de denúncia dos missionários tinham precedentes recentes na diocese de Tete. Entre abril e novembro de 1971, tropas portuguesas acompanhadas por agentes da DGS atacaram Mucumbura, em represália pela eliminação, pela Frelimo, de informadores da polícia política, em outras aldeias: Catacha, Capinga, Matahanda e António. Dois Padres de Burgos, Valverde de Léon e Hernández Robles, a trabalhar numa missão em Mucumbura, recolheram testemunhos, reconheceram os locais de sepultamento das vítimas, escreveram relatos dos acontecimentos e apelaram ao bispo de Tete para que tomasse posição. O bispo evitou tomar uma posição pública e abordou a questão com as autoridades militares em Tete, as quais desqualificaram os testemunhos dos padres, alegando que se baseavam em informações de negros. No entanto, as ações punitivas das tropas portuguesas e da DGS continuaram. Em novembro de 1971, tropas heliotransportadas causaram um número indeterminado de mortos e queimaram mais de 50 palhotas, entre as quais as escolas dos missionários e a casa do professor. Tal como aconteceria em Wiriamu, foram usadas granadas “para poupar nas balas” e incendiar palhotas com pessoas dentro, destruídos celeiros e abatido gado.

Os massacres de Mucumbura foram seguidos dos de Marara, cerca de cem quilómetros a noroeste de Wiriamu e testemunhados pelo comboniano Luís Afonso da Costa. A “operação de limpeza” de Marara durou cinco meses, até maio de 1972.

Se os relatos de massacres por missionários não conseguiam romper o silêncio mediático e a indiferença do sistema judicial, tiveram algum impacto no meio católico: a 1 de julho de 1972, foi entregue ao bispo de Tete um documento assinado por 36 sacerdotes, pedindo-lhe que tomasse posição pública contra os massacres. No decorrer desse ano foi ficando claro o que aconteceria aos padres que testemunhassem publicamente acerca dos massacres: a 2 de janeiro foram presos os padres Valverde de Léon e Hernández Robles. Dois padres do Macúti, na Beira, Joaquim Teles Sampaio e Fernando Mendes, solidarizaram-se com eles, criticando a guerra do púlpito, e também foram presos.

Coube ao padre Luís Afonso da Costa continuar a denunciar os massacres em Mucumbura e Marara, escrevendo diretamente a Marcelo Caetano e entregando documentação pormenorizada a um jornal católico em Roma. Mas todos estes relatos não obtiveram no espaço mediático internacional o impacto que alcançaram em alguns meios católicos. As violências descritas eram classificadas como “violência em massa de baixa intensidade”, própria de ações de contra-subversão, em retaliação de atos da Frelimo.

Wiriamu causou impacto mediático devido à sua escala (cinco vezes superior a Mucumbura), intensidade (tudo se passou em meio dia) e tipo de vítimas (eram todas civis). Apesar desse impacto ter sido amortecido pela lentidão da chegada das notícias à primeira página dos jornais e pelas dúvidas levantadas sobre os factos relatados, a imagem do regime foi abalada e tornou-se ainda mais óbvio que a fratura entre uma parte da Igreja Católica e o Estado Novo alcançara um ponto de não retorno.

 

A missionação católica em Tete

Moçambique, José Augusto Alves de Sousa

Capa do livro de José Augusto Alves de Sousa, uma das memórias de missionação católica.

Para compreendermos o papel dos missionários católicos na divulgação do massacre de Wiriamu e o impacto deste acontecimento na consciência católica é preciso levar em conta a ação da Igreja Católica em Moçambique e, em particular, na província de Tete. A Concordata de Salazar, de 1940, e o estatuto missionário, do ano seguinte, tinham atribuído um papel à Igreja católica na “portugalização” e civilização das populações africanas. Este paradigma missionário começara a ser transformado na década de 1960. D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira, diocese que incluía Tete até 1962, desempenhou um papel de relevo neste processo. Inicialmente procurou conciliar o nacionalismo em que se formara em Portugal com uma fidelidade a Roma que aprofundara nos seus estudos universitários nesta cidade. Na década de 1950 evoluiu num sentido em que dissociava a identidade portuguesa católica da missionação em África. Mas o prelado da Beira era uma exceção na hierarquia católica em Moçambique, que continuava a associar o catolicismo à presença do Estado português em Moçambique, ainda que alguns bispos fossem substituindo nos seus discursos a palavra “civilizar” pela mais moderna e ambígua “desenvolver”.

Entre os missionários católicos, em vários lugares de Moçambique, mas com especial incidência em Tete, onde os Padres Brancos e os Padres de Burgos se tinham fixado a convite de D. Sebastião Soares de Resende, a ideia de “portugalizar e civilizar” cedia lugar a paradigmas missionários influenciados pelo Concílio Vaticano II. A evangelização dos Padres Brancos, especialistas da missionação em África, visava o enraizamento africano do cristianismo. Em 1971 decidiram partir de Moçambique, em protesto contra o silêncio da hierarquia católica perante o poder colonial. Em reação, o governo português expulsou-os de Moçambique. Saíram em maio de 1971, com graves consequências para a reputação do Estado Novo.

Outros missionários, como os Padres de Burgos, provenientes da diocese que lhes dava o nome em Espanha, estavam no início sintonizados com a renovação do Concílio do Vaticano II e, a partir do final da década de 1960 cada vez mais influenciados pela teologia da libertação que irrompera na América Latina. Despontava um novo paradigma missionário, em tensão, conflito ou confronto aberto com outros, que atribuía aos missionários o papel de “libertar” as populações africanas da pobreza e de todos os tipos de opressão.

O massacre de Wiriamu expôs uma fratura no interior da Igreja Católica entre setores minoritários para os quais a missionação era indissociável de um papel profético de denúncia da violência e da injustiça colonial e setores que apoiavam ou evitavam afrontar o Estado português, que continuavam a ver como protetor da Igreja Católica em África.

 

Wiriamu além do silêncio e da denúncia

wiriamu, Guerra Colonial, Moçambique

Soldados portugueses em operações durante a Guerra Colonial. Foto: DIreitos reservados

 

A reação oficial do Governo português foi a negação ou a minimização do massacre, enquanto os relatos de denúncia dos acontecimentos reduziram as populações erradicadas à condição de vítimas. A investigação sobre Wiriamu que visou compreender o que aconteceu, como e porquê, confirmou a existência de quase quatrocentos mortos e deu-nos um vislumbre da vida naquelas povoações de Tete e do contexto da guerra colonial em que foram destruídas.

Os nacionalistas moçambicanos tinham aberto pouco tempo antes uma nova frente de combate em Tete. O régulo de Wiriamu fora contactado pela Frelimo e decidira permitir que os seus homens se movimentassem na região, onde se abasteciam de alimentos e transportavam armas. Ensaiou uma via diplomática que evitasse colocar-se claramente do lado do Estado português ou da Frelimo. Os régulos de Mucumbura passavam informações à PIDE/DGS sobre a Frelimo e foram eliminados com essa justificação, em atos que serviriam de pretexto para o desencadear dos massacres pelas tropas portuguesas. A Frelimo recrutou poucos elementos nas povoações do chamado triângulo de Wiriamu e não alcançou de todo esse objetivo na maior das povoações alvo de atrocidades, Chaworha, com 107 famílias ocupando 128 casas. Quanto aos elementos recrutados, deixavam as suas povoações de origem e integravam acampamentos móveis. O impacto militar direto do massacre de cinco povoações na Frelimo foi insignificante. Privados de apoio alimentar e logístico, os nacionalistas moçambicanos simplesmente deslocaram-se mais para sul, para as proximidades do rio Luenha.

Acontecimento devastador do ponto de vista humano, irrelevante do ponto de vista militar, com um impacto significativo na consciência católica e na imagem do Estado Novo, é difícil avaliar qual pode ser o sentido do massacre de Wiriamu cinquenta anos depois, para portugueses e moçambicanos, para a comunidade internacional. Sabemos que não faz sentido desvalorizar o acontecimento, relativizando-o, contextualizando-o. Como escreveu cerca de quarenta anos depois do massacre José Augusto Alves de Sousa, jesuíta e na época vigário-geral da diocese da Beira, Wiriamu “foi um acto gratuito, evitável” e terá sempre “a cor de um massacre”. O mínimo que se pode declarar é que implica um dever de memória para com as vítimas e uma interpelação a todos os cidadãos empenhados em evitar as violências sobre civis nas guerras em curso.

 

João Miguel Almeida é historiador. Publicou A Oposição Católica ao Estado Novo, ed. Nelson de Matos (2008)

 

Bibliografia
DHADA, Mustafah, O Massacre Português de Wiriamu. Moçambique, 1972, Lisboa, Tinta-da-China, 2016.
SOUSA, José Augusto Alves de, Memórias de um Jesuíta Missionário em Moçambique. 1960-2004. Quarenta e quatro anos de compromisso na Igreja e na sociedade moçambicana. Uma nova face da missão, Braga, Editorial A.O., 2015, p. 422-434.

 

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