
Miúdos de rua no Rio de Janeiro, Brasil. Foto © Diogo Pereira | Unsplash
Esta manhã, à porta do supermercado, como é habitual, estava um menino que pedia leite.
Não era o mesmo menino todos os dias: há um género de organização interna entre os pedintes menores dos bairros do Rio de Janeiro, e vão-se espalhando de modo a ocuparem alternativa e rotativamente, às portas dos estabelecimentos.
Compro o leite e entrego-o; e é neste momento que um homem de cerca de 50 anos, corpo forte e decidido, marrento e raivoso, esbofeteia o menino mesmo à minha frente; e grita “Vou-te cortar as mãos rapaz”…
À medida que lhe grito para que pare, o menino cai no chão, desmaiado por entre o sangue escorrido, a pressentir a morte.
O homem, do alto da sua imponência e orgulhoso da razão, gritava: “Esses moleques me roubando chocolates na venda, ué!” enquanto o povo passava indiferente, adormecido, desligado, gelado. A indiferença; só e apenas, naquele momento, a indiferença.
Peguei, no chão, a cabeça do menino, abriu os olhos e pediu-me, ainda atordoado, que não chamasse a polícia para o homem, porque ele saberia que era a ele que a polícia voltaria a machucar, “é que eu roubei o chocolate, tia.” confessou-me num olhar direto e profundo. “Não roubou, não, menino. Eu paguei esse chocolate pra você”, foi só o que consegui responder.
Senti vergonha de ser gente; vergonha daquele homem que à semelhança de tantos outros não se revê no crime social que comete contra os roubadores de chocolates; cuja lucidez fraqueja em reconhecer que são aqueles meninos as verdadeiras vítimas de uma sociedade estruturada para que os mesmos fiquem de fora. Aqueles meninos são roubados desde que nascem, sabotados por um sistema interessado na sua invisibilidade. Aquele menino arriscava a vida todos os dias para levar leite para casa, e não foi por ele que o homem da venda foi roubado, mas sim pelo próprio governo no qual votou. A raiva do homem não é contra o menino nem contra o roubo do chocolate, o menino é apenas um pretexto, o elo mais fraco onde a raiva pode ser descontada sem consequências. Afinal de contas, só os meninos sem lar – nem leite nem chocolate – conhecem verdadeiramente as profundezas da opressão.
Ana Sofia Brito é performer e artista de rua por opção, embora também mantenha a arte de palco; frequentou o Chapitô e estudou teatro físico na Moveo, em Barcelona.