Franciscanos e dominicanos mudaram o mundo: ser rico entre quem louva a pobreza é muito diferente de o ser entre quem louva, mesmo religiosamente, a riqueza. O humanismo latino e pré-capitalista das cidades e dos mercadores medievais e a crítica do espírito do capitalismo

“Habitantes, por vocação e em cada estação, das ‘terras do meio’, aqueles mercadores eram, simultaneamente, homens do seu tempo e homens fora do tempo, enraizados na sua idade, mas antecipadores de tempos novos.” Foto: Pádua, 2019. © António José Paulino.
O surgir progressivo da ética mercantil, na Idade Média europeia, foi algo de muito mais complexo que a simples laicização da antiga ética religiosa. O processo que, da economia de mercado medieval, conduz ao capitalismo, não foi linear; conheceu interrupções, desvios e saltos. O mercador medieval era, em primeiro lugar, medieval e, depois, mercador. Nas rotas comerciais europeias, juntamente a clientes e fornecedores, encontrava também demónios, espíritos e santos e, enquanto enriquecia na terra, a sua mente estava voltada para o céu.
Habitantes, por vocação e em cada estação, das “terras do meio”, aqueles mercadores eram, simultaneamente, homens do seu tempo e homens fora do tempo, enraizados na sua idade, mas antecipadores de tempos novos. Como todos os inovadores, movimentavam-se entre o já e o ainda não, últimos representantes de um mundo e primeiros de um outro que ainda não existia. Estavam na crista do tempo e, de lá, conseguiam ver mais longe; radicados no presente, especulavam sobre o futuro. A primeira e mais importante comunidade em que viviam não era a societas mercatorum, mas a comunidade cristã; a primeira lei não era a lex mercatoria, mas a da Igreja. Sobre as suas riquezas recaía uma hipoteca social, que era um fogo espiritual que aquecia o dinheiro que queimava as suas mãos se não o partilhassem com a comunidade.
Lemos num dos primeiros livros sobre o comércio: “O que deve ter em si o mercador verdadeiro e íntegro: convém-lhe usar sempre a retidão, fica-lhe bem uma longa providência e não falte ao que promete… Usar a Igreja e dar para Deus. Proibir usura e jogo de zara (apostas), escrever bem a contabilidade e não errar. Amen.” (Francesco Balducci Pegolotti, La pratica della mercatura, 1340 aprox., p. xxvi). “O mercador verdadeiro e íntegro” vivia, portanto, de um cruzamento de práticas comerciais e de temor de Deus, de razão económica e razão teológica, de ética da culpa e de ética da vergonha.
A procura da felicidade individual não tinha sentido se não era precedida, ordenada e contrapesada pela procura da felicitas publica. Felicidade querida dos romanos, que se encontrou com a teologia cristã e, também, com a filosofia do Bem comum. A procura da felicidade pública era uma procura direta, intencional, que se caracterizava renunciando a partes e dimensões consideráveis dos bens privados (não o 2% dos lucros…) para poder realizar bens comuns.
Estamos assim do lado oposto da filosofia moderna da “mão invisível”, segundo a qual, a riqueza pública nasce, indiretamente, da procura individual da riqueza privada. No humanismo medieval, o bem comum nascia subtraindo recursos dos bens privados; no capitalismo, nascerá somando os lucros privados (quando maior for o meu bem, maior será o bem comum).
Um espírito novo

“As novas riquezas mercantis estavam inseridas num contexto religioso e cultural que louvava a pobreza. Os franciscanos e os dominicanos tinham, de verdade, mudado o mundo”. Foto: Caminho de Santiago. © António José Paulino
Quando então, com o segundo milénio, começou a desenvolver-se, no sul da Europa, um novo espírito económico, esse espírito era, naturalmente, novo, mas não era ainda o espírito do capitalismo, se é verdade que este último consiste em olhar “a riqueza como o meio mais idóneo para uma satisfação cada vez melhor de todas as necessidades possíveis” (Amintore Fanfani, Cattolicesimo e protestantesimo nella formazione storica del capitalismo, 1934, pp. 15-16). A riqueza estava muito presente na Florença dos séculos XIII e XV, mas não satisfazia todas as necessidades; não proporcionava a estima social, a paz interior nem o paraíso: ou melhor, a riqueza também satisfazia (parte de) estas necessidades no momento em que, ao dá-la, os ricos se libertavam dela.
Não devemos esquecer que por toda a última Idade Média, a influência franciscana, dominicana e das ordens religiosas na vida económica e civil foi grande e, nalguns aspetos, enormíssima. As praças e as feiras eram povoadas por frades e monges que, com a sua simples presença, recordavam aos mercadores o inferno e o purgatório; eram os seus confessores, conselheiros e assistentes espirituais; os pregadores eram figuras imponentes que não deixavam indiferentes os homens de negócios – até talvez os pregadores quaresmais impressionassem mais as pessoas que a riqueza e a beleza dos grandes mercadores.
As novas riquezas mercantis estavam inseridas num contexto religioso e cultural que louvava a pobreza. Os franciscanos e os dominicanos tinham, de verdade, mudado o mundo, num modo e com uma força que nós não conseguimos nem sequer a imaginar. Graças a eles, o ideal cristão era a pobreza evangélica, não a riqueza. Era-o para os frades e para as freiras, mas também para os leigos, muitos dos quais estavam inscritos nas suas Ordem Terceiras.
Uma riqueza boa, quando partilhada

A pobreza escolhida pelas religiosas, que as coloca numa condição que precisa de ajuda, cria nos ricos a obrigação moral de as socorrer, que desempenhava também uma função redistributiva da riqueza, tornando-a boa. Foto: Contentores na Cova do Vapor, 2011. © António José Paulino.
Nos Países latinos, a riqueza era boa só se partilhada, se se tornava também riqueza pública, porque o centro da vida civil continuou a ser a comunidade. Na Idade Média latina partilhava-se a riqueza com as doações e os testamentos; na modernidade latina é feita com o Estado social. O notário Senhor Lapo Mazzei escrevia assim ao riquíssimo mercador Francesco di Marco Datini: “Doze frades, com um seu superior (que dizem santa pessoa), vendo que, em Siena e noutras terras, não se observava a Regra de Santo Agostinho, partiram de Siena e foram para ali perto, para um determinado lugar na floresta, a viver segundo a Regra, pobremente; … pedem-vos que saiba que naquele lugar, na colina ou na planície, não há nada para eles; bastar-lhes-ia o simples pão, com pouca ajuda” (Lettere di un notaio a un mercante, 1880, vol. 2, p. 132).
Mazzei, nesta e em muitas outras cartas, pede ao seu “pai” (trata-o assim) para ajudar economicamente os conventos, mosteiros, famílias particulares, para comprar objetos sagrados e, no fim da vida, fá-lo escrever, em 1410, um novo testamento onde deixa (quase) toda a sua extraordinária riqueza à “Caixa dos Pobres” de Prato. Numa outra carta, Mazzei adverte o seu mercador sobre as verdadeiras riquezas: “Os que, certamente, são desordenados e ignorantes de qual seja a riqueza do homem, acreditam, como cegos, que a riqueza seja possuir bastantes bens, adquiridos de qualquer modo. Estes, como falsos avaliadores, chamam mal ao bem e bem ao mal” (p. 154).
Mazzei era leigo; no entanto, para Datini, foi um verdadeiro conselheiro espiritual, ator principal da sua conversão. A fé era cultura, não era apenas um assunto religioso – a Idade Média foi muito mais laical do que possamos imaginar, mesmo dentro dos mosteiros e dos conventos. E a beata Irmã Chiara Gambacorti, dominicana, escreveu assim a Datini: “Somos pobres; e, como pobres por amor a Cristo, nos recomendamos a si que, nesta nossa necessidade, nos costuma dar a ajuda que Deus vos inspira” (p. 319).
Destas cartas, brota uma dimensão essencial da relação entre riqueza e pobreza naquele humanismo. A pobreza escolhida pelas religiosas, que as coloca numa condição que precisa de ajuda, cria nos ricos a obrigação moral de as socorrer, que desempenhava também uma função redistributiva da riqueza, tornando-a boa. Um benefício mútuo no centro do pacto civil que regia a estrutura ética medieval.
Um poeta, preso injustamente, ao pedir um empréstimo (não esmola) a Datini, escreve-lhe assim: “Não me envergonho de nada, muito menos de ser pobre” (Jacopo del Pecora, p. 345). Naquele mundo, não se envergonhava da pobreza; da miséria, sim, mas não da pobreza evangélica, porque era imitação de Cristo (e dos seus santos) e compreendê-lo era um privilégio moral.
Um desenvolvimento ou uma traição?

“O espírito do capitalismo moderno foi um desenvolvimento do espírito económico dos mercadores medievais ou foi uma traição dele? O DNA de Bardi e dos Datini era o mesmo do de Rockfeller e dos Bill Gates?” Foto: Bolsa de Valores de Nova Iorque, 2007. © António José Paulino.
Sempre existiram mercadores na Europa, desde o Império Romano; mas os poucos grandes mercadores do séc. XIII eram diferentes. Operavam nos mercados internacionais, conheciam os países do mundo, eram riquíssimos, espetaculares e, sobretudo, tornavam ricas e maravilhosas as suas cidades. Eram ricos mas ainda não eram capitalistas, porque eram habitados por um espírito ainda medieval: “Para os pré-capitalistas, não só se deve realizar uma distinção entre meios lícitos e meios ilícitos para a aquisição da riqueza (o que acontece, mas com outra medida, também para o capitalista), mas também se deve realizar a distinção entre intensidade lícita e intensidade ilícita no uso dos meios lícitos. A moral, para o pré-capitalista não só condena o meio ilícito como também limita o uso do meio lícito” (Fanfani, p. 189).
A moral económica pré-capitalista movia-se num espaço delimitado por dois eixos pré-cartesianos: a licitude e a intensidade. Dois eixos ligados entre si, porque a evolução da licitude, a partir do séc. XIII, dos juros e do lucro também teve consequências no campo da intensidade (se se torna legítimo, dentro de certos limites, fazer dinheiro com o dinheiro, também se confere, indiretamente um estatuto ético mais positivo à riqueza em si).
Com o nascimento do espírito capitalista, diminui o segundo eixo (a intensidade) e ficou apenas o eixo do lícito-ilícito, cada vez mais definido pelas leis dos Estados e cada vez menos da religião. A intensidade nunca mais foi submetida ao juízo da licitude e, no contexto protestante, a riqueza torna-se um indicador de bênção da parte de Deus. Eis-nos dentro da ética do capitalismo. Foi, portanto, uma mudança radical do espírito em relação à riqueza que criou o capitalismo quando, inesperadamente, o enriquecimento individual se torna bênção.
A pergunta, sempre atual, embora não nova, é: o espírito do capitalismo moderno foi um desenvolvimento do espírito económico dos mercadores medievais ou foi uma traição dele? O DNA de Bardi e dos Datini era o mesmo do de Rockfeller e dos Bill Gates? Ou, então, deu-se um salto de espécie? A escola económica católica que, de Toniolo chega até Barbieri, passando por Fanfani, leu o nascimento do capitalismo e, também, a mudança de espírito económico, na passagem da Idade Média à Modernidade, como declínio e decadência moral do espírito económico: “A Reforma, enquanto, com o seu espírito informativo, soltava o travão dos súbitos e menos honestos ganhos, informava e abalava a tradição científica católica e a legislação canónica, arrancava das mãos da Igreja a disciplina moral das relações económicas, que sempre tinha procurado colocar o homem acima do capital. A partir daquele momento, começa a evolução nunca mais contrabalançada da economia capitalista” (Giuseppe Toniolo, L’economia capitalistica moderna, 1983, p. 221).
Embora com algumas distinções entre um autor ou outro, estes estudiosos católicos leem o capitalismo moderno como traição do humanismo medieval tardio. A cultura dominante, no séc. XX, considerou esta leitura “católica” retrógrada e, em última análise, errada. Mas, um capitalismo não mais “contrabalançado”, que está a deteriorar o planeta e aumentando as desigualdades, não nos deveria fazer reabrir um novo período de crítica do espírito do capitalismo?
Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francisco que decorreu em novembro sob impulso do Papa. Escrevendo regularmente no jornal italiano Avvenire, Bruni dedica esta série de crónicas (reproduzidas também no portal da Economia de Comunhão) à exigência de soluções criadoras para ultrapassar crises como a que vivemos, tomando o exemplo dos séculos XIV e XV, quando franciscanos e várias instituições católicas contribuíram para uma revolução económica e financeira na Europa. Este é o décimo primeiro dos textos da série que o 7MARGENS publica todas as quartas-feiras e sábados, aqui reproduzidos com autorização do autor.
Tradução: p. António Antão; revisão: p. António Bacelar; subtítulos do 7MARGENS