O sistema do dote como exclusão das mulheres da herança foi estabelecido pelos estatutos citadinos italianos já no século XIII e evoluiu com o crescimento da classe mercantil. O estigma negativo sobre o celibato feminino levou, de forma gradual, ao nascimento de novos Montepios e entidades de crédito e de beneficência.

O dote era o preço a pagar para excluir as filhas da herança paterna. Foto: Assis, Úmbria (Itália). © Miguel Veiga.
O mercado dos dotes é um dos fenómenos económicos e sociais mais relevantes entre a Idade Média e a Modernidade, o que nos faz entender o alto preço pago pelas mulheres, vítimas sacrificais imoladas no altar da sociedade mercantil. O dote era a porção da herança paterna que uma filha recebia por ocasião do casamento. Uma vez obtido o dote, a mulher já não tinha direitos sobre os bens da família de origem. Portanto, o dote era o preço para excluir as filhas da herança paterna, estabelecendo uma linha de sucessão exclusivamente masculina.
O sistema de dote como exclusão das mulheres da herança foi estabelecido pelos estatutos citadinos italianos já no século XIII e o seu peso cresceu juntamente com a riqueza das novas famílias de mercantes. Conseguir casar as filhas tornou-se um problema cada vez mais sério para as famílias patrícias, ao ponto de Dante lamentar o desaparecimento da Florença pré-mercantil do seu antepassado Cacciaguida, quando “ao nascer, a filha ainda não aterrorizava o pai dela” (Divina Comédia, Paraíso, XV, 103). Aqui, Dante resume num único verso a essência do fenómeno do dote na sua Florença, onde a chegada de uma filha era um custo futuro para os pais.
A discriminação contra as mulheres começou sempre pelo rosto de mulheres, as parteiras, que tinham que dar a uma outra mulher a triste notícia que acabara de dar à luz uma menina – experiências e dores que, graças a Deus, já não compreendemos e esquecemos. O celibato para os homens era como um sinal de nobreza, enquanto o celibato “civil” para as mulheres era socialmente estigmatizado e desencorajado.
A partir do final do século XIV começou em Itália uma inflação do que se tinha tornado o “preço das filhas” para a nova aristocracia: em Veneza, dos 800 ducados no final do século XIV passou-se para os 2.000 no início do século XVI e em Roma durante o século XVI os dotes passaram de 1.400 para 4.500 escudos (Mauro Carboni, Le doti della “povertà”, p. 30). Uma inflação principalmente devida à competição posicional entre famílias ricas que usavam as suas filhas como um bem símbolo do seu estatuto, numa dinâmica hoje conhecida como o “Dilema do Prisioneiro”, onde o aumento no preço dos dotes não beneficiava nenhum dos “concorrentes” – exceto as esposas que, em alguns casos, viram crescer o seu peso económico no seio da família do marido.
A escassez de homens e o destino das filhas ricas

Com o Renascimento, depois, entre as famílias patrícias italianas retomou-se a instituição romana do fideicomisso, nas suas variantes do “morgado” (em latim, majoratus) e da “primogenitura”. Por outras palavras, as heranças eram deixadas inteiramente a um único herdeiro de sexo masculino, geralmente o primogénito, o “mais velho” (maior). Isso permitiu a preservação do património que, se fosse fragmentado entre muitos herdeiros, corria o risco de ser disperso.
No entanto, esta “inovação” produziu dois efeitos secundários importantes. Os filhos cadetes (isto é, todos os rapazes exceto o primeiro) foram gradualmente desencorajados pelas suas famílias a casarem – tanto que, no século XVIII, estes filhos foram de facto excluídos definitivamente de qualquer possibilidade de casamento e as duas carreiras que lhes restavam eram a militar e a eclesiástica.
O segundo efeito dizia respeito ao destino das filhas ricas. A escassez de homens da mesma categoria fazia com que a demanda por maridos excedesse em muito a oferta. Mas se um pai patrício desse a sua filha em casamento a um não patrício, ele teria desperdiçado o dote e comprometido o bom nome da sua família. Também aqui o “bem comum” da família era muito mais importante do que o bem dos indivíduos, especialmente o das mulheres. O que fazer, então?
Antes de mais, as famílias tinham que, quase a qualquer custo, garantir o dote das suas filhas. Eis então que em 1425 o Município de Florença criou um fundo para meninas “não dotadas” (sem dote), o Monte dos Dotes (Monte delle doti), que foi seguido por muitas outras instituições semelhantes, incluindo o Monte dei maritaggi em Nápoles (1578) e o Monte del matrimonio em Bolonha (1583). Eram, ao mesmo tempo, instituições de crédito e instituições de caridade, porque para além de garantirem os juros dos depósitos, também geriam legados e donativos, privados e públicos, em benefício de raparigas sem dote ou com dote insuficiente.
Em Florença, entre 1425 e 1569, cerca de 30.000 meninas foram inscritas no Monte delle doti. O primeiro florentino a usar o Monte, Federigo di Benedetto di Como, depositou 200 florins para a sua filha Diamante; quando esta se casou em 1440, o fundo dotal que liquidou era de 1.000 florins – e como podemos não pensar no esforço dos Franciscanos para fazer com que a Igreja aceitasse o pagamento anual de 5% nos seus Montepios? As famílias que encontramos inscritas nos registos do Monte são sobretudo as famílias dos ricos mercantes de Florença – Acciauoli, Pazzi, Rucellai, Medici, Bardi, Strozzi –, que obviamente recorriam ao Monte para rentabilizar os seus investimentos. Metade das meninas ricas de Florença tinha um título ou livrete (libretto) no “Monte”, e isto não nos surpreende.
É surpreendente, porém, ver muitas filhas de modestos artesãos (por exemplo, os paternostrai, que faziam terços) que também eram titulares de contas. Um pai com riqueza modesta e origens pobres fazia todo o possível e o impossível para obter uma conta dotal para a sua filha, porque sabia que o livrete poderia ser a única possibilidade de lhe dar um futuro melhor (Anthony Molho e Paola Pescarmona, Investimenti nel Monte delle doti di Firenze, in Quaderni storici, 21)
A eliminação através da clausura

A nobre Alessandra Macinghi, Strozzi de casada, escrevia assim sobre o iminente casamento da sua filha Caterina: “Dou-lhe um dote de mil florins: são quinhentos que ela deve receber em 1448 do Monte [dos Dotes] e os outros quinhentos que tenho para dar, entre dinheiro e donativos em géneros [enxoval], quando for para marido.” E acrescenta: “Mas quem toma mulher [para casar] quer dinheiro e não encontrei ninguém que quisesse esperar o dote até 1448, e parte dele em 1450: então dei-lhe a ele esses quinhentos entre o dinheiro e o enxoval, e será portanto para mim, se ela viver, a parte de 1450.” (in Lettere di una gentildonna fiorentina, 1877, pág. 4). A liquidação antecipada do dote constituía, de facto, um risco, pois em caso de morte da titular o valor devolvido pelo Monte era bastante reduzido.
O valor económico do dote da noiva era, portanto, um indicador do valor social da própria mulher. O dote permanecia, formalmente, propriedade da esposa, mas era administrado pelo marido, e voltava à posse da mulher em caso de viuvez. Uma mulher sem dote, porque a sua família tinha empobrecido ou caído em desgraça, era considerada “arriscada” e exposta ao vício.
Daí o nascimento de muitos institutos de assistência a mulheres sem dote, muitas vezes com o nome de Maria Madalena, para meninas e/ou para a recuperação de mulheres caídas em pecado (por exemplo, prostitutas). “Conservadores” e “reclusores” que, enquanto detinham mulheres em situação de risco em reclusão forçada, angariavam donativos para lhes garantir o dote no momento do noivado – que se dava pelo “toque da mão” da mulher à frente de testemunhas – ou da entrada no convento (Luisa Ciammitti, “Quanto costa essere normali. La dote nel conservatorio femminile di Santa Maria del Baraccano (1630-1680)”, in Quaderni storici, 18).
Existe, de facto, uma estreita relação entre o mercado dos dotes e a vida religiosa. O que “fazer” com as filhas que não conseguiam ser “colocadas” no mercado dos casamentos? Resignar-se a um marido de condição social e económica inferior era uma humilhação e um “custo” muito alto que as famílias patrícias não estavam dispostas a aceitar. Eis então que os mosteiros e os conventos ofereceram uma solução.
Para famílias ricas, a vida consagrada de uma filha tornou-se a principal forma de “eliminar o excesso de mulheres no mercado matrimonial, colocando-as num convento e tornando-as institucionalmente estéreis” (Susanna Mantioni, Monacazioni forzate e forme di resistenza al patriarcalismo nella Venezia della Controriforma, 2013). Se um capital muito precioso (i.e. uma filha aristocrática) não pode ser alocado adequadamente no mercado, deve ser destruído por meio da entrada na vida monástica. Porque é melhor destruir do que vender um bem tão precioso, já que a sua venda a uma família inadequada teria iniciado um declínio social cumulativo com custos imprevisíveis.
A eliminação através da clausura representava portanto a melhor solução. E para além disso o sacrifício de algumas filhas patrícias colocadas no convento permitia o casamento conveniente das suas irmãs mais afortunadas. Até porque o dote monástico, ou dote espiritual, era muito mais barato do que o matrimonial (até vinte vezes menos). Isto explica a multiplicação de conventos e mosteiros femininos a partir do séc. XV, e por que razão quase todas as freiras e monjas da era moderna eram de famílias nobres ou burguesas e, de facto, mais de 50% das filhas de famílias patrícias tornavam-se freiras ou monjas.
Mais: as famílias mais ricas mandavam construir para as suas filhas celas privadas, verdadeiros aposentos dentro dos mosteiros, que eram para o uso exclusivo da freira por toda a vida. Estas freiras muitas vezes administravam o dote sozinhas, juntamente com a renda do seu próprio capital. Isto revela uma relação complexa entre a vida comunitária, a propriedade privada e o uso simbólico do espaço pessoal dentro dos mosteiros do início da idade moderna (Silvia Evangelisti, L’uso e la trasmissione delle celle nel monastero di S. Giulia di Brescia”, Quaderni Storici, 30). Estas sugestões são suficientes para entender o que significou a reforma da vida religiosa feminina de Teresa de Ávila.
A dor das mulheres-doadas

Uma última consideração: o uso do registro semântico do “dom” para este tipo de operações é muito significativo. Sobre as religiosas Giovanni Tiepolo, patriarca de Veneza, dizia: “(…) fazendo da liberdade um dom não só para Deus, mas também para a pátria, para o mundo e para os seus parentes mais próximos” (início do século XVII).
Mas que dom é que estava em jogo para aquelas filhas que não escolhiam que vida viver? Em primeiro lugar, era o dom do pai, não o delas. Era o dom que a família e a sociedade pediam a estas mulheres para salvar a ordem social e a própria família. Era o dom parecido com o do potlatch das ilhas do Pacífico estudado por Marcel Mauss (1925), onde o “dom” nada tinha de gratuidade, mas era apenas a linguagem do poder político e comercial, que vai até a destruição do objeto dado (potlatch dissipativo), a fim de afirmar a sua superioridade.
Só os anjos conhecem a dor dessas mulheres-doadas, preços pagos à sociedade que estava a nascer. Oceanos de sofrimento feminino, nos mosteiros e dentro das casas. Essas lágrimas foram a primeira água com a qual misturámos a argamassa para a construção da cidade moderna.
O único, pequeno e parcial (mas não vão!) consolo que resta é pensar que algumas (ou talvez muitas…) daquelas monjas e freiras terão sido maiores do que o seu destino. Como o seu “esposo”, encontraram-se, involuntariamente, elas também pregadas na cruz, e aí algumas decidiram viver aquela dor inocente e não escolhida como um dom, um dom diferente e finalmente gratuito. E, por vezes, ressuscitaram. Se hoje muitas mulheres podem viver as suas vidas em conventos e mosteiros como um verdadeiro dom e como uma verdadeira liberdade, por trás desses dons e dessas liberdades existem também aquelas antigas ressurreições.
Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francesco, que decorreu em novembro sob impulso do Papa. Escrevendo regularmente no jornal italiano Avvenire, Bruni dedica esta série de crónicas à exigência de soluções criadoras para ultrapassar crises como a que vivemos, tomando o exemplo dos séculos XIV e XV, quando os frades das Ordens Mendicantes e várias instituições católicas contribuíram para uma revolução económica e financeira na Europa. Este é o décimo sexto dos textos da série que o 7MARGENS publica todas as quartas-feiras e sábados, aqui reproduzidos com autorização do autor.
Tradução: Andrea Rigato; revisão: p. António Bacelar; edição e subtítulos do 7MARGENS.