A vida social e económica dos mosteiros femininos, entre a Idade Média e a Modernidade tornou-se rica pelo abençoado ora et labora, pecados coletivos e “alegres” desobediências. A clausura foi quer um “fechar dentro” as mulheres, quer um “fechar fora” as ingerências masculinas.

“A superiora deve procurar que os ferros das grades dos locutórios sejam estreitos, de modo que não possa passar a mão.” Foto: Janela de Soror Mariana Alcoforado, no actual Museu de Beja. © António José Paulino.
“Em 1602, em Roma, houve um processo, depois da descoberta de um buraco aberto na sala do boticário, donde se podia ver a rua. Apareceu, como única responsável, uma jovem conversa, irmã Damiana, que admite ter feito a abertura com o espeto grande, usado para o assado. Interrogada sobre as razões, ela respondeu que fora ‘nada mais que ver o reboco de fora, que se soltava e senti vontade de ver donde vinha’” (Alessia Lorosi, I monasteri feminile a Roma nell’età della Controriforma, Vilella 2012).
A vida social e económica dos mosteiros femininos entre a Idade Média e Modernidade contém uma riqueza imensa. Dentro daquelas clausuras coletivas, quase sempre forçadas, ocorriam processos humanos, hoje quase totalmente esquecidos, mesmo pelo movimento feminino e feminista. O meu primeiro auspício, para este 8 de Março [data da publicação do original deste texto no jornal Avvenire] vai para elas e para as suas irmãs de hoje.
Os mosteiros femininos sempre foram instituições com liberdade limitada e vigiada por homens. Homens quase sempre celibatários que, com base em mulheres imaginadas, produziam regras para governar a vida de mulheres em carne e osso: “Sendo tal o voto de castidade, as monjas são cada vez mais obrigadas pela fragilidade do seu sexo”. E, para guardar o sexo frágil que, de acordo com aqueles teólogos, as expunha mais facilmente (de machos!) ao pecado carnal, “a superiora deve procurar que os ferros das grades dos locutórios sejam estreitos, de modo que não possa passar a mão” (Giovanni Pietro Barco, Specchio religioso per le monache, 1583). Eis porque a clausura não foi apenas um “fechar dentro” as mulheres, mas também, como me recorda a minha amiga carmelita Antonella, um “fechar fora” do mosteiro os machos e as suas inferências, embora sem nunca o conseguir suficientemente.
Também os mosteiros femininos viviam um seu ora et labora. Nos mosteiros, junto e a par do seu trabalho dos amanuenses (ainda não suficientemente realçado), nascem também as verdadeiras escolas de bordados (segundo a escola italiana, que deixa descoberto o fundo do pano). Outro sector “clássico” eram os doces (e, em parte, também os licores): “A cidade de Bolonha faz um comércio notável de marmelo ou calda de marmelo. As religiosas competem para ultrapassar-se uma à outra nesta doce manufatura” (Jean-Baptiste Labat, Diario, 1706).
Em toda a Sicília as religiosas eram especializadas em doces e iguarias. Os livros de receitas mais raros eram considerados uma espécie de monopólio secreto dos mosteiros femininos – a “fruta martorana” deriva do mosteiro feminino de Martorana. Ainda na Sicília (Noto), era célebre a fabricação de cera nos mosteiros femininos, que alcançavam uma notável qualidade. Também produziam vinagre, perfumes, cultivavam flores, faziam rosas de seda, sabões, mas também cilícios, flagelos, correntes, pulseiras e colares para raparigas (Antonino Terzo di Palazzolo e Lina Luica, I lavori delle clastrali, 1991).
Desprezo pelos serviços e hierarquia social

Importante e pouco conhecido, era o trabalho artístico. Além de tocarem vários instrumentos e serem apreciadas e procuradas como mestras de canto, as monjas escreviam poesias e peças de teatro que eram apresentadas durante as celebrações religiosas (Elissa B. Weaver, Convent Theatre in Early Modern Italy).
Depois do Concílio de Trento, as abadessas opuseram muita resistência aos bispos, que procuravam aplicar as restrições em matéria de teatro, música e canto nos mosteiros: “Não se façam comédias nem representações” (in Angela Fiori, La tradizione musicale del monastero delle clarisse di Santa Chiara in Napoli). Proibições quase sempre não acatadas. É interessante a figura da irmã Plautilla Nelli (1524-1588), recordada por Vasari, que referia que os santos da ir. Plautilla eram muito “femininos”: “A Nelli, em vez de Cristos, faz Cristas” (Vincenzo Fortunato, Memorie dei più insigni pittori…).
Lendo os documentos, especialmente os livros das crónicas escritas pelas próprias monjas, o que, de facto, ressalta imediatamente – porque evidente e óbvio – é que, nos mosteiros, se refletiam as estruturas e as hierarquias sociais que ali tinham gerado: entre ricos e pobres, patrícios e plebeus, homens e mulheres. As monjas eram divididas entre coristas (ou veladas) e conversas (ou serviçais), por vezes chamadas “senhoras” e “servas” (Clarissas de Nápoles).
As coristas, que rezavam no coro e tinham feito a profissão solene, eram as monjas com plenos direitos. Votavam a abadessa que devia, necessariamente, ser escolhida de entre as coristas, e podiam ser “oficiais”, isto é, ocupar as primeiras posições no governo dos mosteiros – boticária, mestra do coro, mestra de noviças, porteira, vigária, camerlenga, sacristã, tesoureira, despenseira – e só elas podiam fazer parte do conselho da abadessa (as monjas “discretas”).
As conversas eram, normalmente, analfabetas, socialmente inferiores e tratadas como tal, dormiam em camaratas, deviam ocupar-se das tarefas domésticas, das irmãs doentes e dos trabalhos mais humildes dos mosteiros. Assim, aliviavam as veladas das ocupações mais terrenas. E se a conversa se tivesse tornado capaz de ler, devia, no entanto, abster-se de o fazer e manter as distâncias das “bem colocadas” coristas.
Depois do Concílio de Trento, as conversas foram transferidas para um edifício próprio, embora continuassem a ser as camareiras pessoais de cada corista. Em San Silvestre in Capite (Roma), em 1665, as coristas lamentaram-se do facto de as conversas, na enfermaria, não quererem fazer os trabalhos mais humildes e, nas grades, não lhes cediam o lugar.
O desprezo social pelos serviços, que ainda marca a nossa civilização, não depende apenas de ser assunto feminino e, portanto, doméstico; nasce também da hierarquia social entre mulheres. As mulheres nobres eram também isso, porque não eram mulheres dos serviços, graças a outras mulheres pobres (ontem, nos mosteiros e nos palácios patrícios; hoje, nas nossas casas). No entanto, dentro destes paradoxos que a nós, hoje, parecem incompreensíveis se não fazemos um notável esforço de empatia histórica, algo de novo estava a nascer.
Abadessas e monjas a resistir aos cardeais

Um primeiro sector, também este improvável e paradoxal, é o do direito penal. A conceção da pena, entendida como educação e reabilitação, é atribuída ao movimento iluminista e utilitarista do século XVIII (Beccaria e Bentham). Raramente se lembra o papel dos mosteiros. Foi também para punir monges e monjas, que se desenvolveu a pena como longa reclusão, prolongada no tempo, numa prisão do mosteiro, baseada num mundo antigo.
Por exemplo, no mosteiro das agostinianas de Santa Marta de Roma, a monja que tinha cometido uma falta gravíssima “seja mantida em sequestro, com discrição e caridade, procurando sempre que se converta e volte à penitência”. A prisão tinha como objetivo a recuperação da culpável, algo que se aproxima da visão moderna da pena. A linguagem das prisões nasce como desenvolvimento da monástica – “celas” e “locutório”.
A vida económica dos mosteiros femininos é uma mina quase toda inexplorada. Em primeiro lugar, um espanto (pelo menos meu): o da resistência das monjas à “comunhão de bens”, que o Concílio de Trento procurou reintroduzir. Lendo os documentos, nota-se que, apesar das visitas e os documentos dos bispos, os mosteiros femininos eram desobedientes, em tema de propriedade privada de cada monja. Porquê?
É importante um episódio, referido, também este, no trabalho fundamental de Alessia Lirosi sobre os mosteiros romanos. Em 1601, o cardeal protetor pede para abolir a propriedade privada pessoal: “Tendo o cardeal acabado o seu discurso, todas as madres, em comum consenso, responderam que, no passado, tiveram o mesmo desejo; mas o mosteiro não tinha a faculdade de poder manter o comum, de modo que as monjas tiveram necessidade de recuperar as suas coisas”.
Portanto, tinham experimentado, dizia a abadessa, mas a gestão comum não tinha funcionado. O cardeal insistia, de modo que as monjas “sem fazer outra réplica, com inefável alegria, cada uma levou roupas de linho e de lã para a sala do crucifixo com tudo o que as monjas tinham de particular”. Mas, acrescenta Lirosi, “depois de tal mudança repentina na vida, lentamente, algo se abrandou. De facto, poucos anos depois, em 1607, as disposições dadas pelo cardeal foram reafirmadas, proibindo também bordados e sedas nas toalhas dos altares de cada uma ou nas cortinas da cama”.
A abadessa e as suas monjas resistiram, portanto, às ordens da comunhão de bens. Esta desobediência era expressão de apego às suas coisas por parte das ricas mulheres nobres? Por vezes terá sido apenas isto, talvez quase sempre. Mas creio que alguma abadessa tenha desobedecido por algo mais importante. E naquelas poucas monjas diferentes, talvez fosse apenas uma, estavam todas as mulheres do mundo.
Os primeiros atos de liberdade geraram o espírito moderno

Quando a vida te conduz a uma reclusão e chegas, um dia, a pegar no espeto grosso para fazer um buraco no muro para ver a vida que flui para lá do teu recinto, descobres, inesperadamente, o valor das coisas. Iluminam-se tanto ou mais que as do altar e das imagens da capela. Falam-te, dizem-te que existes verdadeiramente, que estás aí. E compreendes ou intuis que obrigar-te a tirar as tuas coisas da tua maleta, “os bordados e as sedas das toalhas do altar”, a renunciar às poucas coisas que te permitem chamar “meu” (“Nenhuma diga meu de coisa alguma, mas de todas diga: nosso; apenas para o mal diga: meu”, Constituição monástica citada in Lirosi), é uma violência excessiva, à qual as monjas e as suas abadessas resistiam (é bonita esta solidariedade entre as mulheres, pelo menos aqui), pelo instinto vital totalmente feminino. Há uma “coisa” totalmente feminina e diferente, que ainda não compreendemos.
O significado verdadeiro e justo da propriedade privada talvez não tenha nascido apenas nos tratados de Locke ou de Duns Escoto; algumas linhas foram escritas também dentro daquelas clausuras, quando algumas mulheres se recusaram a chamar “nosso” porque intuíam que aquele “nosso” estava, simplesmente, a matá-las. A recordar-nos que nem todos os “nossos” são bons, mas apenas os que nascem de encontros de gratuidade entre muitos “meu” dados. Ontem e hoje.
A boa comunhão de bens é abrigo no caminho, é o cume de um processo de comunhão da vida que, um dia, floresce em comunhão de bens, nunca imposta nem pedida oficialmente como o pagamento devido, hoje, por um cheque em branco assinado ontem. O “meu” que renasce no “nosso” só pode ser o fruto de uma escolha minha que também se torna tua. Fora e dentro dos mosteiros. Pelo contrário, demasiados “nossos” são coberturas ideológicas de abusos de poder e de violência. Como há uma propriedade privada que nasce do pecado individual – recordava-o Duns Escoto – existe também uma propriedade comum que nasce do pecado coletivo.
O buraco no muro da irmã Damiana, os repetidos “não” à destruição das obras teatrais, as desobediências das abadessas aos cardeais, feitas com “alegria”, devem ser contados entre os atos de liberdade que geraram o espírito moderno, espírito de homens e de mulheres. Mas a modernidade laica não o sabe.
Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francesco, que decorreu em novembro sob impulso do Papa. Escrevendo regularmente no jornal italiano Avvenire, o autor dedica esta série de crónicas à exigência de soluções criadoras para ultrapassar crises como a que vivemos, tomando o exemplo dos séculos XIV e XV, quando os frades das Ordens Mendicantes e várias instituições católicas contribuíram para uma revolução económica e financeira na Europa. Este é o décimo sexto dos textos da série que o 7MARGENS publica todas as quartas-feiras e sábados, aqui reproduzidos com autorização do autor.
Tradução: p. António Antão; revisão: p. António Bacelar; subtítulos do 7MARGENS.