O mercado e o templo (19): E, com a dor das mulheres, o mercado tornou-se divino

| 19 Mai 2021

A Contra Reforma foi um tempo determinante também para a cultura económica e social da Itália e da Europa meridional. Nos conventos, as monjas eram reclusas vítimas de penitências extremas, protagonizando um imenso mercado da dor e do sofrimento. Para a Igreja e a sociedade, aquelas vidas, trancadas mas “produtivas”, tinham valor.

 

“Roda” na Igreja de São Sebastião, Ponta Delgada (Ilha de São Miguel, Açores). © Miguel Veiga

“O Concílio de Trento tinha reintroduzido a clausura apertadíssima para as monjas.” Foto: “Roda” na Igreja de São Sebastião, Ponta Delgada (Ilha de São Miguel, Açores). © Miguel Veiga.

 

A época da Contra Reforma foi um tempo determinante para a cultura económica e social da Itália e dos outros países da Europa meridional. Algo se interrompeu na evolução da ética do mercantilismo que tinha feito de Florença, Veneza ou Avinhão lugares extraordinários de riqueza económica e civil. Entre os muitos rostos da Idade Moderna está também o das mulheres, especialmente o da vida monástica feminina, pouco conhecido porque escondido e até mesmo ocultado.

O Concílio de Trento tinha reintroduzido a clausura apertadíssima para as monjas. Os bispos e as congregações romanas aumentaram controlos e normas sobre os mosteiros femininos. Perante uma Igreja reformada, que anunciava a salvação somente pela graça, que criticou a vida consagrada até a abolir, que tinha reduzido muito o papel dos sacramentos, refutado radicalmente a teologia dos méritos e até das indulgências e abolido o Purgatório…, a Igreja de Roma relançou, com força, a importância das obras do homem para a salvação, multiplicou os institutos de vida consagrada, reforçou a pastoral dos sacramentos, inclusive o da confissão, voltou a colocar no centro o mérito, as indulgências e o Purgatório.

Nesta grande batalha teológica, as primeiras e mais numerosas vítimas foram, também aqui, as mulheres, sobretudo as fechadas em mosteiros e conventos. Um movimento enorme, se pensarmos que, entre coristas, conversas e terceiras ordens, nalgumas regiões italianas, as monjas atingiam, no século XVII, 10 a 15% da população feminina “adulta” (isto é, na época, com mais de doze anos). Por isso, compreender um pouco a vida destas mulheres significa compreender melhor a história da Europa e também o nosso presente. Mas porque existiria uma relação tão grande entre a vida nos mosteiros femininos e a economia?

O primeiro pensamento vai para o ora et labora, mas não é o mais interessante e justo porque, onde a lógica económica entrou pesadamente na vida das monjas foi, paradoxalmente, na espiritualidade, na ascética e na mística. A Idade Média já tinha produzido uma sua “religião económica”. As penitências tarifadas dos monges, onde, a cada pecado, correspondia uma pena com respetiva tarifa, depois do século XIII, tornaram-se negociáveis como uma espécie de mercadoria. A penitência foi objetivada e separada do pecador e, assim, uma culpa podia ser paga por uma pessoa diferente da culpável. Daí todo o comércio de orações, peregrinações, até ao famoso mercado das indulgências.

 

Uma extravagante interpretação do uso da dor humana
Convento de Nossa senhora do Bom Sucesso, Lisboa. © Miguel Veiga.

“As principais praças destas originais bolsas de valores eram os mosteiros e os conventos, sobretudo os femininos.” Foto: Convento de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Lisboa. © Miguel Veiga.

 

A Contra Reforma conheceu uma forte recuperação da dimensão económico-retributiva do catolicismo, embora com bastantes novidades. Uma diz respeito, diretamente, às mulheres. De facto, enquanto na Idade Média os atores do comércio religioso eram quase exclusivamente homens, na primeira Idade Moderna são as mulheres as primeiras operadoras desta estranha visão da religião católica. As principais praças destas originais bolsas de valores eram os mosteiros e os conventos, sobretudo os femininos. E o capitalismo latino tornou-se divino.

Vejamos como. Tudo gira à volta de uma particular (e extravagante) interpretação do significado e do uso da dor humana, lida em relação à dor de Cristo. Sabemos que, no Novo Testamento, existe uma tradição que tinha lido a paixão e a morte de Jesus como pagamento de um preço ao Pai para lucrar o perdão dos nossos pecados. Esta ideia de um Deus-Pai que, para ser “satisfeito”, teve necessidade do sangue do seu Filho (porque só um preço de valor infinito podia extinguir uma dívida infinita), atravessou o primeiro milénio e foi sistematizada por Santo Anselmo de Aosta.

Mas tinha permanecido um assunto para teólogos, até que, com a Contra Reforma, se tornou, nos mosteiros, algo de extraordinário e de impensável, uma coluna da época barroca. A antiga teologia da expiação transformou-se numa verdadeira cultura da expiação, que penetrava nas práticas religiosas e na piedade popular. A dor humana tornou-se, assim, a principal moeda para pagar os débitos/culpas, próprias e dos outros. O que, na idade Média, era o comércio das indulgências e das peregrinações, na época da Contra Reforma tornou-se o comércio da dor, sob forma de penitências, humilhações, mortificações. Uma dor principalmente feminina. A linguagem dos Manuais dos Confessores, que explodem nesta época, revela esta viragem: “obras penais”, “obras satisfatórias”, “reparações”, “almas-vítimas”. O confessionário tornou-se o principal mecanismo de transmissão deste comércio da dor.

Acima de tudo, destaca-se uma expressão: sofrimento vicário. Isto é, começa-se a pensar (e a agir) que se podia sofrer em favor dos outros, que alguém pudesse pagar pessoalmente para expiar culpas alheias, ainda vivo ou no Purgatório. Com base nalgumas citações da Escritura (por exemplo, da carta deutero-paulina aos Colossenses: “completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo”: Cl 1, 24) e um uso original da categoria de Igreja como “corpo místico” (onde o que acontece num membro se repercute em todos os outros), criou-se um imenso mercado da dor e do sofrimento. E, assim, enquanto a Europa do Norte desenvolvia os mercados “reais”, no Sul as categorias económicas eram aplicadas à religião e às mulheres.

 

O poder dos confessores e as penitências cada vez mais extremas
Igreja do senhor Santo Cristo, Ponta Delgada (Ilha de São Miguel, Açores). © Miguel Veiga

“As monjas atribuíam um sentido e um valor ao seu ser ‘vítimas reclusas’ porque liam o próprio sacrifício como oferta agradável a Deus e aos homens.” Foto: Igreja do senhor Santo Cristo, Ponta Delgada (Ilha de São Miguel, Açores). © Miguel Veiga.

 

Um ingrediente deste originalíssimo sistema de trocas era o chamado “tesouro dos méritos” de Cristo e de Maria, méritos tão grandes a ponto de superar o débito dos pecados humanos; assim, a Igreja podia “vender” a parte excedente daquele tesouro para remir outros débitos de pecadores, através das indulgências. Mas o golpe de génio teológico foi pensar que as penitências e a oferta dos sofrimentos humanos pudessem aumentar o Tesouro e, consequentemente, a sua parte excedente disponível para os pecadores vivos e ainda mais para os do Purgatório: “Deus quer que o débito se pague” (Divina Comédia, Purgatório X, 108). Eis porque os mosteiros femininos se tornaram “centrais de produção” desta riqueza espiritual: com a sua dor deviam aumentar o Tesouro. Como gostava de dizer Veronica Giuliani: “Muitas almas vão para o inferno porque não há quem faça sacrifícios por elas.”

Daí uma proliferação, nos mosteiros femininos, de penitências cada vez mais extremas, frequentemente ordenadas pelos confessores, graças ao seu enorme poder sobre as monjas. Porém, o sistema atingia a sua perfeição quando as monjas interiorizavam o valor da dor e, assim, se autoinfligiam mortificações, humilhações, procurando, em perfeita boa-fé, toda a espécie de dores a fim de salvar-se a si mesmas e, sobretudo, os outros.

Um equilíbrio perfeito: as monjas atribuíam um sentido e um valor ao seu ser “vítimas reclusas” porque liam o próprio sacrifício como oferta agradável a Deus e aos homens; a Igreja e a sociedade atribuíam um valor social e religioso àquelas existências trancadas, mas “produtivas”. São impressionantes as biografias ou autobiografias de monjas: “O confessor concordou que duas horas de sono por noite, com um lençol esfarrapado como única cobertura, seriam suficientes. Dando-lhe um novo cilício, munido com mais de cinquenta aguilhões e um chicote com a ponta de ferro e não fez objeção a que Maria Madalena usasse correntes serrilhadas nos braços e nas pernas” (Anne J. Schute, Orride e strane penitenze, pp. 159; 266).

Numa outra biografia: “Uma resposta semelhante teve de Deus quando, durante uma noite de Natal, a irmã Margarita pede para ser admitida entre o boi e o burro para adorar o Menino Jesus: No presépio, não há lugar para os três porque os animais, em comparação contigo, têm qualidades maiores e mais meritórias” (Mariano Armelinni, Margherita Corradi monaca benedittina (1570-1665), 1733). E na célebre história de Maria Crucificada: “Antes do almoço, estando as irmãs no refeitório, fui, como uma Besta, isto é, acorrentada a quatro pés, beijando os pés às irmãs” (Francesco Ramirez, 1709).

 

Escrever em memória das mulheres-vítimas, quase sempre ignoradas
livros espirituais © Miguel Veiga

Os livros espirituais eram uma das fontes essenciais para a vida das monjas nos conventos. Foto © Miguel Veiga.

 

Outra fonte essencial são os livros espirituais para monjas: “Mal acordeis, imaginai-vos ser um réu acorrentado e conduzido ao tribunal para ser julgado ou como um leproso, todo cheio de chagas; e, com estes ou outros pensamentos semelhantes, vão-se vestindo” (Giovanni Pietro Pinamnonti, La religiosa in solitudine, 1697, p. 31). E, num manual para confessores, muito difundido, o setecentista de Afonso Maria de Ligório, lê-se: “A penitência, portanto, apenas deve ser medicinal para remédio da vida futura. Mas também penal e vingativa para a vida passada. As penitências, geralmente úteis a todos, são a entrada em qualquer congregação” (Afonso M. de Ligório, Il sacerdote provveduto, p. 240). Portanto, entrar numa congregação, visto como forma de penitência útil a todos.

Estas ideias e práticas duraram séculos; em muitos casos, até ao Concílio Vaticano II. Ainda num texto do século passado, lemos: “No convento das Dominicanas de Vercelli, havia, entre outras, uma regra que proibia de beber, entre uma refeição e outra, sem permissão da superiora, a qual, porém, rarissimamente a concedia, incitando as irmãs a este pequeno sacrifício, em memória da sede que Jesus sofreu no Calvário” (Luyigi Carnino, Il purgatorio nella rivelazione dei Santi, cap. 17, 1946). De facto, não foi para mim fácil pensar e escrever este artigo. Escrevi-o com o espírito com que se escreve uma lápide, uma estela em memória das mulheres-vítimas, quase sempre ignoradas. Para parar diante delas, refletir, chorar. Depois, escrever também para lhes pedir desculpa, à distância de séculos – desculpas vicárias que faço como homem, por conta de outros homens do passado.

A dor humana pode ter um sentido. Talvez algumas ou muitas destas monjas tenham sido maiores que o seu destino e que as teologias erradas e violentas para com o corpo das mulheres. Talvez. Mas, primeiro Job, e depois os Evangelhos, tinham-nos dito que só os ídolos gostam do sangue dos seus fiéis. O Deus bíblico é diferente. Só uma visão errada dos homens e, sobretudo, das mulheres, pode pensar usar o seu sofrimento como moeda agradável a um Deus qualquer.

Uma última nota. Todo este comércio de sangue e de dor feminina era totalmente gratuito. A Igreja, nos seus homens, vendia as indulgências e pedia, aos leigos, esmolas para compensar os pecados: “A regra é: para os pecados de avareza, esmolas” (Afonso M. de Ligório, cit.). O comércio religioso que acontecia no corpo das mulheres era, pelo contrário, todo dom e, por isso, grátis. A mulher como ícone do sacrifício gratuito, para a proteger do comércio mercenário. Passaram décadas, séculos. As monjas e as irmãs que, hoje, entram nos mosteiros e nos conventos, são muito diferentes e, por vezes, nem conhecem estas histórias.

Estas antigas penitências foram eliminadas pelo Concílio Vaticano II, embora ainda esteja enraizada em muitos cristãos a ideia teológica de que a nossa dor possa ser uma “moeda” que o Deus-credor dos homens aceita de boa vontade, portanto, que Deus gosta da dor dos seus filhos, tornando-o, assim, pior que nós. Mas, na vida civil e económica, as mulheres continuam ainda demasiadamente a praticar expiações vicárias, a pagar na sua carne pelas famílias e pela sociedade, e o seu trabalho permanece não reconhecido e desvalorizado e, não raramente, em nome do dom. Mulheres muito distantes e diferentes, sofrimentos ainda muito semelhantes.

 

Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francesco, que decorreu em novembro sob impulso do Papa. Escrevendo regularmente no jornal italiano Avvenire, o autor dedica esta série de crónicas à exigência de soluções criadoras para ultrapassar crises como a que vivemos, tomando o exemplo dos séculos XIV e XV, quando os frades das Ordens Mendicantes e várias instituições católicas contribuíram para uma revolução económica e financeira na Europa. Este é o décimo nono dos textos da série que o 7MARGENS publica todas as quartas-feiras e sábados, aqui reproduzidos com autorização do autor.

Tradução: p. António Antão; revisão: p. António Bacelar; subtítulos e edição final do 7MARGENS.

 

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