Em poucas décadas, Reforma e Contra Reforma acabaram com o terreno ético conquistado pelos mercadores entre os séculos XIV e XVI. O século XVII foi mais “religioso” que o século XIV, mas talvez menos “cristão”. E, depois da amizade entre frades e mercadores, entre clérigos e empresários, ressurgiu um afastamento suspeito.

“O século XVI, com a sua explosão barroca de devoções, foi mais religioso que o século XIV, mas talvez não tenha sido mais cristão. Foto: santuário do Sameiro, em Braga.” © António José Paulino
Com a Reforma protestante e a Contra Reforma católica, o terreno ético que os mercadores italianos e europeus tinham conquistado, entre os séculos XIII e XVI, desapareceu em poucas décadas. A ética económica da Contra Reforma voltou à de séculos antes, como se Olivi, Duns Escoto, Boccaccio, Francesco Datini, Benedetto Cotrugli, não tivessem nem escrito nem agido; como se os milagres de beleza e de cultura de Florença, Génova e Veneza tivessem sido apagados da consciência coletiva.
As virtudes a enaltecer voltaram a ser as aristotélicas, nobres e agrícolas, não já as do comércio. O relógio da história foi atrasado para a sociedade feudal do século XI. A encíclica Vix pervenit, de Bento XIV, em 1745, que declarou legítimos os juros sobre as hipotecas, apresentava as mesmas teses dos franciscanos, mas quase meio milénio depois. As páginas medievais de ética económica do franciscano Bernardino de Sena e do dominicano Antonino de Florença, ainda hoje são estudadas e meditadas; pelo contrário, ninguém recorda as homilias de Geronimo Garimberto nem as quaresmais de Paolo Segneri, os grandes moralistas económicos da época da Contra Reforma. O século XVI, com a sua explosão barroca de devoções, foi mais religioso que o século XIV, mas talvez não tenha sido mais cristão.
Os efeitos económicos e civis mais importantes da Contra Reforma foram os imprevistos e colaterais. O primeiro é o mais conhecido. A luta contra a usura voltou a ser um tema quente. Todo o contrato podia ser implicitamente usurário. Então, ocupar-se de economia e de comércio tornou-se uma profissão perigosa; é melhor dedicar-se às profissões liberais e, sobretudo, à agricultura, uma vez que sobre as rendas e usuras agrícolas (os “censos”), a atitude da Igreja era muito mais suave.
Daí a progressiva distância que se vem a criar entre a classe mercantil e a Igreja Católica. Acontece com o comércio algo de semelhante ao que estava a acontecer com a teologia: dado que, abaixo dos Alpes, dedicar-se à teologia podia ser arriscado e até mesmo levar à fogueira, depois da Reforma os estudiosos italianos e latinos dedicaram-se a outras coisas (à música, à arte, à literatura, ao teatro) e a teologia moderna torna-se assunto predominantemente protestante.
Para fazer uma ideia, basta olhar para o mais difundido Manual dos Confessores, do Abade Gaume: “Ao mercador pergunta-lhe se reteve alguma parte do preço, mesmo no caso em que o patrão tivesse determinado o preço…”. E, depois, segue-se um longuíssimo elenco de casos especiais a verificar com cuidado durante a confissão (1852, p. 163). Quem conhece os empresários, sabe bem que se há alguma coisa que esta categoria de pessoas detesta é a intromissão externa nas escolhas do “foro interno” da própria empresa. Por isso, é melhor confiar a prática ordinária dos sacramentos às mulheres ou às irmãs e, assim, evitar penitências, excomunhões, infâmia e desonra.
Um património de confiança devorado pela Reforma e Contra Reforma

A conquistada autonomia das coisas terrenas é absorvida, progressivamente, por uma nova clericalização da vida e das consciências. Na Idade Média tardia, a vigilância ética dos mercadores era exercida pelos franciscanos e dominicanos. Desenrolava-se numa convivência normal e na amizade e era um acompanhamento participativo e solidário de pessoas em carne e osso, vistas nas praças, não imaginadas, nos confessionários. O trauma da Reforma-Contra Reforma devorou este património de confiança e de segurança, e criou a suspeição recíproca e as distâncias típicas do primeiro milénio cristão.
O papel das ordens religiosas é um segundo importante efeito indireto da Contra Reforma. O clima criado pela Reforma gerou, no mundo católico, uma suspeição geral em relação às antigas ordens religiosas (Lutero era monge agostiniano). Os mosteiros e os conventos, sobretudo os masculinos, de cumes de espiritualidade e de cultura, começaram a ser olhados como potenciais covis de heréticos, porque os monges e os frades eram estudiosos da Escritura e porque “carismaticamente” abertos aos ventos de reforma. Não poucos monges e frades foram investigados e condenados. Alguns franciscanos, por exemplo, acusados de luteranismo foram executados em meados do séc. XVI: Giovanni Buzio, Bartolomeo Fanzio, Girolamo Galateo, Cornelio Giancarlo, Baldoi Lupatino.
A Reforma Tridentina não se apoiou nas ordens antigas (monges e mendicantes), mas nas novas ordens, sobretudo nos Jesuítas, mas também nos Barnabitas, Teatinos, Somascos e nos sacerdotes diocesanos. A nova suspeita e o desapreço em relação aos antigos monges não só travou o desenvolvimento daqueles laboratórios económicos, culturais e tecnológicos que foram, durante muitos séculos, os mosteiros; complicou, não pouco, a ação económica e social dos franciscanos e a sua assistência pastoral aos mercadores e artesãos nas cidades.
O desenvolvimento que os Montepios tinham tido, graças à ação dos Frades Menores, a partir da segunda metade do século XVI, conheceu uma crise. Os Montepios, embora continuassem a ser fundados, afastaram-se, progressivamente, dos franciscanos para se tornarem instituições municipais ou das dioceses. Perderam, assim, o seu ser bancos, que sustentavam também a atividade dos pequenos e médios empresários, para se transformarem em entidades de pura assistência e beneficência: “O Concílio de Trento colocou o Montepio entre os Institutos Pios e entre os postos de trabalho que os bispos tinham de visitar regularmente” (Maria G. Muzzarelli, “Monti di Pietà” in Dizionario di Economia Civile).
A feminização da religião

Um terceiro efeito indireto da Contra Reforma foi a progressiva “feminização” do sagrado e da religião; “Os homens podiam confessar-se, as mulheres deviam” (Adriano Prosperi, I tribunali della coscienza), porque a frequência pública dos sacramentos era uma pré-condição para acesso ao mercado dos matrimónios e para a honra pública das casadas. A esfera económica e política era entendida, cada vez mais, como um assunto masculino, ao passo que o sagrado e as práticas religiosas se tornaram o reino da mulher, religiosa ou casada – “casa e igreja”.
As práticas religiosas conjugavam-se mal com a virilidade, e uma prática religiosa cada vez mais feminina produzia práticas devocionais onde os homens se sentiam mal e das quais, por isso, desertavam – e o processo autoalimentava-se em igrejas ornamentadas pela (e para a) sensibilidade feminina, com respetivas linguagens, orações e cânticos; uma feminilidade que não é sentida nas igrejas protestantes. A prática da religião católica começa a tornar-se uma “profissão” de mulheres, governada totalmente por homens. Exércitos com soldados mulheres e oficiais homens.
As mulheres tornaram-se também a principal entrada da Igreja na vida da família e, assim, da sociedade: “O homem é naturalmente pagão e cabe à esposa cristã não tanto convertê-lo quanto salvar-lhe a alma. O homem selvagem bebe, joga, blasfema, incomoda as mulheres, bate; a esposa missionária não contesta estes seus costumes, mas ocupa-se do seguro, que é aquele mínimo de missas, sacramentos e devoções suficientes para estar fundamentalmente em paz com o céu. Depois, basta apanhar a alma no leito de morte” (Luigi Meneghello, Libera nos a malo). Portanto, a teologia do sofrimento vicário funcionava perfeitamente nesta oikonomia familiar: as mulheres podiam salvar o marido, pai e filhos, oferecendo as suas penitências e os seus sacrifícios.
A confissão satisfazia bem também o lado da “procura”: as mulheres, sobretudo as consagradas, encontravam no sacerdote o único contacto com o exterior e com os homens que, não raramente, evoluía para amizade e confiança. Daí a gestão dos confessionários, que se generalizaram na Contra-Reforma, e das pequenas janelas dos mosteiros ser particularmente cuidadosa e disciplinada, também pelas repetidas ofensas de sollectitatio e de sedução nos confessionários e pelos conflitos entre religiosas. Como os denunciados em Ferrara, em 1623, quando um “confessor, mostrando diligência apenas por uma dezena de religiosas jovens, provocou a divisão das religiosas; as demais, por despeito, abstinham-se, há meses, da confissão” (Mario Sanseverino, Un pericoloso ministero: confessare le monache nella Napoli della Controriforma 1563-1700). Por isso, depois do Concílio de Trento, foi introduzido o confessor único para todo o mosteiro e o Papa Gregório XIII introduziu o limite de três anos de mandato.
Migrações do mundo monástico

É interessante notar que, enquanto no início da norma dos três anos, eram as monjas a pedir o respeito da rotação, algumas décadas depois, a atitude muda e são muitas as monjas a pedir o prolongamento do triénio. Não admira, portanto, que, em finais do século XVI, em diversas cidades, se começou a pagar aos confessores, para evitar o comércio de ofertas e gorjetas entre religiosas individuais e confessor. Uma posterior interseção entre economia e religião: o pagamento de um discreto salário monetário (no mosteiro de Santa Cruz de Lucca, por exemplo, o estipêndio era de 60 ducados) usado como instrumento para desencorajar a criação de bens relacionais porque inconvenientes ou, pelo menos, imprudentes. O bem comum do mosteiro (ou, pelo menos, o que vinha entendido como tal pelos responsáveis, talvez não pelas religiosas) é perseguido com a introdução de dinheiro público em vez de ofertas privadas. A dizer-nos que, quase sempre, o dinheiro afasta e substitui as ofertas, mas não é óbvio valorizar os efeitos desta substituição sobre todas as partes em causa – também os sistemas clientelistas e mafiosos são derrotados com a introdução de contratos transparentes.
Por fim, um último efeito diz respeito à comparação com países protestantes. No mundo da Reforma – Max Weber no-lo recordou – o laicado torna-se, essencialmente, o lugar da profissão laboral, entendida como vocação (beruf). Fechados os mosteiros, por Lutero e Calvino, desenvolveu-se a ideia de que o novo lugar onde cultivar a vocação cristã fosse o trabalho civil: o convento torna-se a cidade. Do ora et labora dos monges, os protestantes tomaram o labora, que igualmente se torna uma nova forma de oração.
Também o mundo católico da Contra Reforma conheceu uma migração do mundo monástico. Mas, da fórmula monástica, tomaram o ora, a oração, que se tornou uma nova forma de trabalho, sobretudo feminino, nos mosteiros e nas casas. De facto, toram as práticas religiosas monásticas (ideal de perfeição, acompanhamento, luta espiritual, penitências…) a tornarem-se o ideal da vida dos leigos, sobretudo das leigas. Portanto, não é verdade que o individualismo é apenas uma marca do Protestantismo. Existiu também um individualismo católico, embora muito diferente. O individualismo nórdico desenvolveu-se no terreno dos direitos e das liberdades e torna-se o individualismo do foro externo; o latino torna-se um individualismo do foro interno, privado, familiar e feminino, com mulheres ocupadas no cuidado da alma e da casa, mas excluídas do foro externo, domínio exclusivo dos homens (mais nos países católicos que nos protestantes).
Mas há uma boa notícia. O antigo espírito da arte do comércio não morreu. O fogo permaneceu vivo, debaixo das cinzas. Mesmo sem o saberem, muitos empresários italianos e espanhóis têm o mesmo ADN ético dos mercadores que tornaram esplêndidas as nossas cidades e as nossas igrejas, as suas próprias virtudes, o seu próprio amor civil. Não o sabem, mas é assim. Um espírito novo do comércio que ainda está quente, vivo e vivificante.
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Com este texto, termino a série de vinte artigos dedicados à origem da ética mercantil. Uma viagem apaixonante e rica de descobertas, como sempre aconteceu nas muitas séries de artigos escritos para o Avvenire, graças à confiança arriscada do seu Diretor.
Luigino Bruni é coordenador da iniciativa A Economia de Francesco, que decorreu em novembro sob impulso do Papa. Escrevendo regularmente no jornal italiano Avvenire o autor dedica esta série de crónicas à exigência de soluções criadoras para ultrapassar crises como a que vivemos, tomando o exemplo dos séculos XIV e XV, quando os frades das Ordens Mendicantes e várias instituições católicas contribuíram para uma revolução económica e financeira na Europa. Este é o último texto da série que o 7MARGENS publicou durante dez semanas, todas as quartas-feiras e sábados, aqui reproduzidos com autorização do autor.
Tradução: p. António Antão; revisão: p. António Bacelar; subtítulos e edição final do 7MARGENS.