
Ignição por fusão nuclear, o mesmo tipo de energia que existe no nosso Sol, provocada pela primeira vez na história, no Laboratório Nacional Lawrence Livermore nos EUA. Foto © LLNL Laboratório Nacional Lawrence Livermore
Os olhos do mundo voltam-se para o Laboratório Nacional Lawrence Livermore nos EUA onde os cientistas conseguiram, pela primeira vez na história humana, a ignição por fusão nuclear, o mesmo tipo de energia que existe no nosso Sol. É o milagre de um segundo Sol com uma energia limpa no sentido de ser segura, produção residual de lixo radioactivo de curta duração; ou seja, um dia, um copo de água pode fornecer energia a uma casa durante um ano. Mas da prova de conceito ao fornecimento comercial deste tipo de energia podemos ter de esperar ainda algumas décadas. Décadas que não temos.
A fusão nuclear, ao contrário da fissão, consiste em produzir energia a partir da energia libertada na fusão de protões e neutrões de um átomo de deutério (“água pesada” que se encontra facilmente na água salgada) com um de trítio (mais difícil de obter a partir do lítio) para formarem hélio, aquele gás muito usado nos balões. Se somarmos as massas dos protões e neutrões envolvidos, a massa total é superior à massa do átomo de hélio formado mais o neutrão que sobra. É aqui que entra a equação de Einstein – E = mc2 – de onde se calcula a quantidade enorme de energia que se liberta associada ao excedente de massa. As condições para a fusão exigem temperaturas da ordem das dezenas de milhares de graus Celsius que na National Ignition Facility se conseguiram à custa de 192 lasers. Depois, a cavidade cilíndrica é revestida com uma camada de diamante que implode ao receber Raios-X, forçando a fusão do deutério com o trítio. A energia libertada é maior do que a energia fornecida e daí a razão de se falar na enorme potencialidade de um pequeno segundo Sol.
Ao contrário da fissão nuclear, que gera grandes quantidades de lixo radioactivo e pode ser muito perigosa quando existem fugas não controladas (como em Chernobyl), a fusão nuclear precisa de ambientes muito controlados; senão, é chama que se apaga à mais ínfima brisa – por assim dizer. Os montantes financeiros que viabilizaram este momento foram muito grandes, apesar de serem menores do que os subsídios cedidos às indústrias de combustíveis fósseis. Porém, pode levar ainda algumas décadas até se aperfeiçoar o processo de ignição de modo a torná-lo comercializável. Até lá, o que fazer? Basta acabar com o modelo do crescimento económico.
Já repararam como a Apple lança um modelo novo de iPhone todos os anos e de cada vez que o fazem, dizem sempre que este é o melhor que alguma vez fizeram? Será que a Apple se pergunta: as pessoas precisam? A dinâmica do contínuo crescimento económico que orienta a vida das grandes empresas é o motor responsável pelos elevados consumos de materiais e energia que se tornam cada vez mais insustentáveis. Num comentário para a revista Nature, diversos investigadores propõem o decrescimento como forma de nos focarmos no bem-estar das pessoas, reduzindo os impactes ambientais, e criando na mesma nações prósperas.
Uma das facetas do decrescimento que favorece a saúde das pessoas e diminui, substancialmente, o impacte ambiental consiste na redução da semana de trabalho para quatro dias. No início de Novembro, o Governo português apresentou um projecto-piloto às empresas e parceiros sociais, de redução do número de dias de trabalho da semana para quatro. Como devem imaginar, as empresas não gostaram muito da ideia, mas o efeito tem sido validado por muitos grupos de investigação como se lê no supracitado comentário da Nature. Ao contrário daquilo que os empresários pensam, com quatro dias de trabalho apenas, reduz-se o stress e burnout, as pessoas dormem melhor e a produtividade mantém-se ou pode mesmo aumentar. Existem vários factores que merecem ainda ser estudados, mas o tempo necessário para encontrar soluções é menor do que as décadas previstas para que a energia por fusão nuclear possa chegar às nossas casas.
Há pessoas que legitimamente pensam ser um desperdício de dinheiro investir em ciência que leva décadas a produzir frutos, quando existem tantas necessidades prementes. Mas não sei se essas pessoas hesitam em comprar o novo modelo de telemóvel ou o próximo maço de tabaco que tem apenas o preço acessível por ser subsidiado. A ideia subjacente, também, ao decrescimento é a de diminuir a alocação de fundos a coisas que fazem mal à saúde das pessoas e do ambiente, para os re-alocar em soluções difíceis, mas com efeitos profundos e duradoiros, como é o caso da fusão nuclear.
Muitos investigadores suaram, desmotivaram-se, sofreram horas sem dormir para chegar à prova de conceito que ocorreu nos últimos dias. São poucos os que valorizam tamanho feito da ciência e tecnologia que emerge da mente humana. Mas, um dia, quando os nossos netos ou bisnetos ligarem a luz e pagarem muito pouco e sentirem o ar mais respirável, será a esta persistência que se deverá a sua sobrevivência.
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra. Para acompanhar o que escreve pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao. Contacto: miguel@miguelpanao.com