
A vida é muito mais que uma unidade objetiva de ciência. Foto © Hal Gatewood / Unsplash
A vida é muito mais do que um mistério da objetividade, isto é, algo que possa ser compreendido apenas a partir da bioquímica ou qualquer outra abordagem dita objetiva. A vida é sobretudo o mistério da subjetividade, realidade que existe absolutamente no mundo, e da qual, enquanto seres vivos, temos direta perceção. A vida é muito mais do que uma unidade biológica orgânica, um metabolismo; ela é sobretudo unidade de consciência, que é muito mais fundamental. Daqui se segue que é impossível dar resposta ao mistério da vida sem dar resposta ao mistério da subjetividade.
Ora, dado que a unidade de uma subjetividade não se pode reduzir ao meramente orgânico e, portanto, a nenhum fenómeno ou conjunto de fenómenos estritamente biológicos, ela parece, por conseguinte, ter um estatuto ontológico próprio, a bem dizer independente. Isto significa que a compreensão da subjetividade não se pode fazer a partir do exterior, ou seja, a partir de uma abordagem estritamente objetiva, como se faz, por exemplo, com o átomo ou qualquer outro fenómeno físico. Ela tem de ser feita através de uma objetividade interior, que é no fundo aquilo que constitui a própria subjetividade: perceção direta de si mesma no reduto da própria interioridade. É neste reduto, e somente nele, que o que quer que seja pode ser compreendido; e se a subjetividade quer compreender-se objetivamente, ela tem sem dúvida de olhar para si própria, desde dentro de si própria.
O primeiro passo, sem o qual nenhum outro é possível, é ela própria tomar consciência de que é uma subjetividade. Isto sucede, frequentemente de forma natural e inesperada, logo que o indivíduo consciente descolou do imediato das perceções do mundo, voltando-se para si e assim descobrindo-se um “eu”; ou seja, quando pela primeira vez, e de forma fulgurante e frequentemente inesquecível, pensa ou diz: “Eu sou”, exprimindo deste modo a experiência total, em simultâneo absolutamente evidente e absolutamente misteriosa da sua subjetividade. O mistério da subjetividade é realmente mais do que o mistério da perceção ou da possibilidade/natureza do conhecimento; é o mistério do Eu sou. Se a subjetividade nunca chegasse ao “eu sou”, nunca chegaria à consciência de si, e portanto não seria verdadeira subjetividade, ou sê-lo-ia de forma incompleta. E nunca se lançaria na tentativa de se compreender a si própria.
Mas será o Eu sou a real natureza da subjetividade? O seu ser? Os budistas e muitos céticos fisicalistas e materialistas dizem que o “eu” não passa de uma ilusão, ainda que persistente. No caso dos budistas, trata-se mesmo de aniquilar o “eu”. Mas, se é verdade que existe um “eu” construído, identitário, socio-cultural, que é a projeção interna do meio historicamente situado em que nascemos e crescemos, também é verdade que o verdadeiro “eu sou” não se reduz a isso. Caso contrário, mesmo esse “eu” construído nunca poderia chegar a constituir-se, porque careceria de um eixo fundamental de unidade indissolúvel em torno do qual pudesse formar-se. Há em nós uma unidade subjetiva indiscutível sem a qual nunca chegaríamos a ser um “eu”, porque, no fundamental, o “eu” não se constrói, apenas se depara consigo mesmo, dá-se conta da sua própria natureza pré-existente. Essa unidade garante, em absoluto, que eu serei o mesmo, e não outro, durante toda essa vida a que chamo minha, independentemente de quaisquer mudanças de personalidade, identidade, autoconceito, etc. Mudanças deste tipo são naturais e podem acontecer por simples maturação individual ou até por lesões cerebrais ou doenças. Mas a unidade de consciência que é a essência da individualidade não muda nem pode mudar. O indivíduo nunca poderá dizer, por exemplo, que as suas memórias de infância não são suas (a não ser se estiver a mentir ou por patologia), porque ele sabe, instintivamente, que são suas, não de outra pessoa. Pois a consciência que uma vez as percecionou no passado como eventos concretos, assimilando impressões diversas, internas e externas, é a mesma que hoje as perceciona como memórias. Não é outro que as perceciona, mas o mesmo “eu”. As memórias não se “outram”, para usar a expressão de Fernando Pessoa. Como não se “outram” as perceções subjetivas, os pensamentos, as experiências. Um outro facto é este: as células de todo o corpo humano renovam-se completamente de dez em dez anos aproximadamente, mas um indivíduo não se torna outro de dez em dez anos. As mudanças fisiológicas não alteram o eixo fundamental através do qual se desenvolve o processo de individuação, que se baseia na consciência de si reforçada progressivamente pela memória pessoal de experiências sempre necessariamente referidas a si próprio.
Há portanto na subjetividade um eixo absoluto sem o qual a individuação não é possível. O “eu” jamais se pode tornar “outro” ao nível mais fundamental do centro das suas experiências subjetivas. Chegar a tomar consciência deste centro não é como tomar consciência de algo exterior e impessoal, como reconhecer que se tem pele, unhas e mesmo estômago. É tomar consciência de algo que me é absolutamente constitutivo, cuja evidência subjetiva só pode ser expressa num assombrado “Eu sou”. Este não tem como referente qualquer identidade exterior construída, mas o próprio centro sem nome da subjetividade; não se refere ao eu superficial e nominal, mas ao eu profundo e radical, tão absolutamente real e necessário quanto misterioso.
Dir-se-á porventura que o “Eu sou” é um desenvolvimento tardio da evolução da consciência, ou o produto mediado de um raciocínio, mas nunca algo pré-existente na própria consciência como algo fundamental.

Mesmo que assim seja, há um a priori que é evidente, e portanto isento de dúvida, porque dele temos direta experiência: há interioridade. Basta considerar um momento, porque estamos dentro dela. Esta não é neutra, nem vazia, nem alheia a si própria com um objeto, mas antes uma experiência de todo o momento, a experiência-base de todas as experiências possíveis. A experiência da perceção de uma árvore não é a experiência da árvore em si, mas a experiência da própria perceção. Ora, uma experiência não existe sozinha; faz parte da sua essência a existência do experimentador. Segue-se que a interioridade não pode estar isenta de um sujeito, um “eu sou”. Toda a interioridade, para ser integral e sempre a mesma, remete necessariamente para o mesmo centro onde a experiência subjetiva tem lugar, caso contrário fragmentar-se-ia em miríades de outros, ou em coisa nenhuma. Assim, um “eu sou” fundamental é necessário.
Ora, o raciocínio permite-nos a metacognição, isto é, distanciarmo-nos da experiência imediata das coisas como exterioridades, para podermos precisamente pensá-la e chegarmos à conclusão de que percecionamos sempre de um ponto de vista interior. Daí para o “Eu sou” é só um pequeno salto. Esta conclusão não diz respeito a algo que está fora da nossa experiência possível, como acontece frequentemente nos nossos raciocínios de tipo indutivo, quando por exemplo prevemos que x pode acontecer com base na experiência imediata de y. Muito pelo contrário, trata-se de uma conclusão absolutamente dentro da minha experiência possível, na verdade dentro da minha experiência mais direta e atual possível, que é a da minha própria interioridade. Nada mais fiz senão aprender a ver melhor aquilo que, desde há muito, estava mesmo diante dos meus olhos, porventura tão próximo e íntimo que passava despercebido. É que eu não tenho interioridade, como tenho por exemplo dedos ou estômago; eu sou interioridade. E a interioridade sou eu, num sentido muito fundamental. A interioridade não é predicado do meu ser, mas a sua própria e misteriosa natureza; e a sua natureza é, no mais fundamental de si própria, Eu sou.
Por outro lado, a experiência original do “eu sou”, aquela que uma criança ou jovem têm pela primeira vez, quando, subitamente, são inundados pela evidência avassaladora da sua própria subjetividade, não é produto de um raciocínio, mas uma intuição, o que sugere por si só que há nela algo de imediato, uma experiência direta do a priori do Eu sou da consciência.
Esta experiência, que tanto pode ser súbita e inesperada como suscitada pela meditação atenta no mistério que ser e existir significa para cada um, é de uma tal intensidade e contém uma tal necessidade, que é como se a consciência se abrisse para o infinito de uma subjetividade mais vasta e fundamental, muito para além da perceção limitada do nosso próprio eu. É como se existissimos nela e por ela, em vez de nos possuirmos a nós mesmos. Neste sentido, o “eu sou” do qual cada um tem experiência imediata exprime um absoluto e infinito Eu sou, que é, no dizer de Santo Agostinho, infinitamente mais íntimo a nós mesmos que o nosso próprio eu.
Em conclusão, a vida e o seu infinito, manifesto na sua persistência, ubiquidade e multiplicidade – não obstante a fragilidade dos indivíduos vivos particulares – parece assim toda ela estar radicada neste abismo infinito de interioridade-subjetividade absoluta, que desde sempre filósofos, teólogos e místicos têm designado por Uno, Absoluto, Infinito ou Deus. Persistir em explicar o fenómeno da vida sem ter em conta esta realidade absolutamente real e incontornável, é falhar o essencial. Porque a interioridade-subjetividade não é uma coisa entre coisas, mas uma experiência imediata de uma unidade absoluta, autossubsistente e de limites desconhecidos. Por isso é totalmente errado afirmar, como muitos fazem, que a vida é “só química”, ou “só biologia”, ou “nada mais do que metabolismo”. Tais afirmações padecem de um realismo ingénuo inconsciente de si próprio, um preconceito metafísico – até mesmo entre aqueles que renegam em absoluto a metafísica – que reduz a realidade à objetividade exterior, material, mecânica das coisas. Uma tendência frequente de tomar a parte pelo todo, consoante o ponto de vista com que se aborda a realidade. Para quem só sabe usar martelo…
Em boa verdade, nem a química é só química, nem a biologia só biologia, nem nada só aquilo que parece. A realidade das coisas nunca é só a realidade das coisas, ou aquilo que fazemos da realidade das coisas, porque cada abordagem é sempre parcial, limitada a um ponto de vista ou nível da realidade. Só compreendendo isto se pode compreender que fórmulas como “tudo é energia” ou “a origem do universo é o Big Bang” não explicam de facto nada de fundamental acerca da realidade. E muito menos respondem a todas as questões. Dizer que tudo é energia não responde à questão da natureza última da realidade, pois nem sequer nos diz, afinal, o que é a energia. Suscitar a teoria do Big Bang para explicar em definitivo a nossa origem e a do universo, ou para descartar imediatamente explicações “não estritamente do âmbito das leis físicas”, é não compreender que esta é uma explicação que não só não explica, como deixa em aberto as questões mais fundamentais, tornando-as ainda mais prementes. Um exemplo é a da da alegada criação do ser a partir do nada, já que se pressupõe normalmente que o Big Bang foi o momento zero absoluto da criação do tempo e do espaço.
Um verdadeiro materialista antimetafísico, se fosse coerente com o que acredita, abster-se-ia de fazer afirmações gerais definitivas acerca da natureza íntima da realidade.
Já um metafísico teria sempre como ponto de partida este facto fundamental e dificilmente refutável: a subjetividade e, portanto, a consciência individual, é interioridade, isto é, realidade percecionando-se a si própria a partir de dentro de si própria. De tal maneira que parece sustentar-se a si mesma a partir de uma realidade ontológica mais fundamental da mesma natureza. Portanto, consciência é já metafísica, e o ponto de partida de toda a metafísica. E a vida é, essencialmente, consciência.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).