O “monstro” de Frankenstein

| 9 Set 2023

Gravura: Mary Wollstonecraft Godwin (1797-1851) nasceu em Londres, filha do filósofo político William Godwin e da teórica feminista Mary Wollstonecraft. Mary Shelley depois do casamento com o poeta Percy Shelley.

 

O meu filho mais velho ofereceu-me, há já algum tempo, o romance “Frankenstein”, de Mary Shelley. Agradeci, mas guardei-o no escaparate que destino aos volumes em lista de espera para uma eventual melhor oportunidade. Entretanto, o tempo foi passando, a pilha em espera foi aumentando, outras prioridades foram surgindo, até que nas presentes férias de verão, já cansado de tantas leituras ensaísticas, resolvi recuperar do limbo esse volume meio esquecido. As primeiras páginas entusiasmaram-me tanto que não parei até lhe sugar o tutano. Não há dúvida de que há motivos justificados para uma obra resistir à erosão do tempo. E a verdade é que esta não só lhe resistiu como muitos acontecimentos atuais têm dado razão ao sentido profundo da narrativa.

O conhecimento é uma dádiva dos deuses cheia de ambiguidades. Quem não teve já consciência de que os “ignorantes” são mais felizes exatamente por desconhecerem as condições da sua eventual perdição? Basta olhar para a história da humanidade para verificar essa ambiguidade. Se o conhecimento trouxe ao ser humano o domínio do ambiente hostil em que as condições de sobrevivência eram escassas, também o dotou de poderosos mecanismos de destruição. Esse facto é tão velho como a humanidade. E sempre o ser humano teve plena noção dessa espada de dois gumes que lhe fora dada pela natureza. Sabemos hoje como temos aplicado meticulosamente os nossos conhecimentos para extermínio de outros povos e como agora, na era da energia atómica e das alterações climáticas devastadoras de origem antropogénica, impende sobre nós um destino obscuro. O nosso conhecimento pode conduzir-nos à autodestruição. Seremos, se for caso disso (e Deus queira que assim não seja), os algozes dos nossos filhos e netos. Todavia, não prescindimos do conhecimento. Ele está intimamente ligado à nossa natureza. Dele depende em larga medida a nossa sobrevivência.

O romance em apreço põe em relevo o aspeto disfórico do conhecimento humano. O nosso herói, ou anti-herói, cria o monstro que o leva à perdição. Paradoxalmente, a criatura pode efetivamente ser bem mais poderosa do que o seu criador, rebelar-se contra os seus ditames, assumir ela própria o seu destino e tomar as rédeas do poder. Não é, afinal, o que a humanidade tem feito desde sempre na relação tensa e competitiva com o seu Criador? Os mitos antigos dão disso a mais eloquente lição — o que prova a consciência do ser humano acerca da ambiguidade dos seus poderes. Logo no Éden, no relato do Génesis, a primeira transgressão a uma ordem divina tem a ver com o conhecimento de que o primeiro casal se apodera, sendo punido por isso. Depois do dilúvio, os homens constroem uma torre para se apoderarem do céu e assumirem eles próprios as características do Criador. Prometeu, o demiurgo, rouba o fogo dos deuses e oferece-o ao ser humano, sofrendo em seguida a ira divina (não é por acaso que o subtítulo do romance é “O moderno Prometeu”). A humanidade sempre quis alcançar o ponto mais alto do conhecimento e do poder que lhe está associado, roubando-o furtivamente à divindade. As filosofias da morte de Deus entroncam-se nesta busca de omnipotência e de autonomia absoluta do ser humano. Tal como o filho “deseja” a morte do pai para adquirir a sua emancipação psicossocial, assim a humanidade assassina Deus para lhe usurpar a omnipotência. A partir daí, não há outro Deus senão o Homem!

Porém, as coisas não são bem assim. O ser humano não é, de facto, omnipotente. Ele pode ser destronado, pelos engenhos que produz, do lugar que indevidamente ocupou. No século XIX estávamos ainda longe de ter a plena consciência disso, mas o nosso romance é uma premonição interessante daquilo que pode ser o futuro da humanidade, se é que algum futuro nos reserva a insensatez humana. O desenvolvimento da inteligência artificial pode conduzir-nos nesse sentido. Poderemos vir a ser cabalmente substituídos pelo poder das máquinas se as dotarmos do fogo divino que roubámos aos deuses. E não tenho dúvida de que as dotaremos de todas as capacidades que o nosso conhecimento puder engendrar! Quando tal acontecer, que resta ao ser humano senão ser subjugado pelo poder divino que as máquinas assumirem?

Porém, o monstro criado por Victor Frankenstein — o nosso anti-herói — não era intrinsecamente maligno. Era demasiado semelhante à natureza do seu criador. Podia aprender o amor, a bondade e a gratidão, caso lhe fosse proporcionado o ambiente propício. Mas podia ser maldoso, vingativo e perverso, caso lhe fosse negado um tal ambiente. A sua personalidade revelava-se tão ambígua como a de qualquer ser humano, inclinada para o bem ou para o mal, consoante a relação estabelecida com os seus semelhantes.

O romance mostra quais as condições do desenvolvimento do homem bom: só a aceitação e o amor poderão suscitar nele uma inclinação para o bem. E é aqui que se revela uma outra dimensão da condição humana tão relevante na relação interpessoal: a imensa dificuldade da aceitação do outro enquanto outro, do outro enquanto diverso, do outro enquanto elemento exterior ao grupo do qual nos sentimos pertença. Talvez por necessidade de sobrevivência, os seres humanos desenvolveram atitudes tribais através das quais tendem a interpretar o outro como fonte de problemas, como ameaça à própria existência ou, pelo menos, à própria felicidade. O outro pode ser uma fonte inesgotável de contrariedades; como tal, deve ser eliminado. Grande parte dos conflitos e dos genocídios têm origem neste medo ancestral.

O “monstro” sofrerá na pele as consequências nefastas da sua aparência física demasiado distorcida segundo os padrões de normalidade humana. A rejeição é o único sentimento que vê surgir no espírito dos humanos cada vez que com ele se confrontam. Provavelmente, os “monstros” que através do nosso engenho e da nossa criatividade criamos nunca serão tão tenebrosos como os que nos habitam o nosso próprio espírito. E a única luta que vale a pena travar é com esses que nos desfiguram a existência. Contudo, preferimos bastas vezes deixar-nos conduzir pelos ditames odiosos com que nos aferrolham a alma. E é assim que o pobre “monstro” do romance se vê confrontado com o medo, a concomitante rejeição e agressão com que os outros o brindam cada vez que se mostra publicamente. E é assim também que se torna previsivelmente o monstro que os outros veem nele e que ele não tinha necessariamente de ser.

O confronto com o seu criador torna-se, portanto, inevitável. Afinal, fora ele que o engendrara irrefletidamente e o abandonara à aversão do mundo. O único responsável pela sua existência havia-lhe virado as costas, expondo-o aos temporais da vida. Cabia portanto a ele terminar a obra que iniciara, dando-lhe, como Deus fizera com o homem, uma companhia que a ele se assemelhasse tornando assim a sua existência suportável. Porque nenhuma vida é suportável quando vivida em inteira solidão! O indivíduo entregue ao seu próprio abandono devora-se a si mesmo.

Mas o dilema que se coloca ao coração de Victor é pertinente. Por que razão alguém é mau? A maldade que assola o espírito humano deriva da escassez insanável de amor ou, pelo contrário, é a maldade, ínsita ao coração humano, que promove o ódio alheio? Dito de forma mais simples: a pessoa revela-se má por não ter sido amada ou não foi amado por ser má? A aceitação duma interpretação ou de outra há de alterar radicalmente a atuação de Victor. O monstro defende que se tornou mau por não ter sido amado, mas Victor teme que tenha sido a sua natureza degenerada a provocar a rejeição dos outros. Afinal o que é o ser humano? Talvez o “monstro” tenha realmente razão: é a rejeição ou aceitação que moldam o caráter de uma criança, transformando-a num ser adaptado, digno de amor, ou num monstro imoral digno de aversão. É provável que o ser humano não nasça bom nem mau. Será apenas um organismo programado para lutar pela própria sobrevivência, sem qualquer outra regra que se lhe imponha naturalmente. É o contacto com o ambiente que vai moldar a sua consciência moral. Sofrendo a rejeição, percecionará o ambiente como hostil e o seu instinto de sobrevivência ditará também a sua rejeição dos outros como condição de possibilidade para a própria sobrevivência. Sendo amado e aceite, há de percecionar o ambiente humano como favorável à sua sobrevivência e, portanto, digno de ser amado. A partir daí, desenvolve-se um círculo virtuoso ou vicioso, consoante a situação a que tenha sido submetido. Quanto mais amar tanto mais encontrará acolhimento e amor nos outros. Quanto mais odiar tanto mais encontrará rejeição e ódio, num círculo infinito de autodestruição e ruína.

A questão pertinente que se levanta à consciência de Victor é a de saber se aquilo que o conhecimento e a capacidade técnica podem fazer devem necessariamente ser feitos. Por outras palavras, haverá limites morais à realização de todas as capacidades técnicas do ser humano? E mesmo havendo teoricamente tais limites, não estará o ser humano condenado a criar o que o seu conhecimento é capaz de produzir? A história tem vindo a dar razão a esta surpreendente possibilidade. A resposta de Victor, talvez demasiado otimista, é que não cabe ao homem criar tudo aquilo que o seu conhecimento permitir, caso preveja males maiores dos que aqueles que serão resolvidos, mesmo que tenha de arrostar com consequências pessoais devastadoras.

O que é ainda mais interessante para a análise contemporânea das possibilidades técnicas da humanidade é o facto de o romance equacionar a hipótese de a obra criada vir a ser dotada não apenas da capacidade de destruir, mas também de se autorreproduzir sem recurso ao criador humano original. Numa tal circunstância, todas as possibilidades estão em aberto e o futuro é uma incógnita que escapa às previsões da humanidade.

No fundo, a grande advertência do romance é a seguinte: homem, toma cuidado com o conhecimento por que tanto anseias; é com ele que te salvas; é com ele que te perdes; na verdade, é o conhecimento que te ergue acima do animal que há em ti, mas é com ele também que podes fazer ruir o mundo humano que muitas gerações ajudaram a construir; o conhecimento eleva-te;  o conhecimento degrada-te.

Que fazer então? Só há um caminho para a redenção do homem: a via do amor. Mas essa parece estar vedada tanto ao herói como ao monstro por ele criado. Victor Frankenstein será a maior vítima da sua imprevidente criação, tal como o ser humano poderá vir a ser vítima dos monstros que criar, porque, na verdade, é já vítima dos monstros íntimos que o habitam.

 

Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.

 

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