
Cristãos a escutar uma mensagem do Papa acerca das alterações climáticas: o tema é um dos mais importantes no documentário de Evgeny Afineevsky. Foto: Direitos reservados.
Um mosaico construído pelos dramas da humanidade, que o Papa assumiu como seus, é como se pode definir o filme-documentário Francesco, do realizador russo Evgeny Afineevsky, que foi apresentado na Festa do Cinema de Roma na passada quarta-feira. Na noite deste domingo, 25, a obra ficou disponível no Savannah Film Festival (EUA), podendo ser alugado e visto até ao próximo sábado.
O filme, que o 7MARGENS já viu, ultrapassa em muito a questão das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, que dominou as notícias na última quarta-feira, 21. Antes mostra um Papa que não se limita a falar sobre esses dramas mas que, em muitos casos, está atento a todos eles e se faz presente, incluindo até com gestos concretos. Dessa forma tem contribuído para colocar muitos deles na agenda mediática. E, em alguns deles, tem exercido mesmo uma influência benéfica.
Ao longo de quase duas horas, vemos passar no filme quase todos esses dramas. Haverá um ou outro que porventura não é referido explicitamente no documentário, apesar de ter merecido a atenção do Papa, como é o caso da luta contra a Máfia e a corrupção.
Entre os que merecem maior destaque e a que o documentário dedica maior tempo, destacam-se a guerra e a crise ambiental. Esta é uma das questões que mais preocupa Francisco, e constitui o tema de abertura do filme, dedicando-lhe nove minutos. Ligada àquelas duas questões, estão ainda o drama dos refugiados e a pobreza.
Em relação à crise dos refugiados o Papa fez o que estava ao seu alcance, para incitar todos a fazerem o mesmo: quando foi a Lesbos, na Grécia, levou consigo três famílias muçulmanas, que acolheu no Vaticano. Quando questionado por um jornalista sobre essa sua opção, e se não tinha medo que elas pudessem influenciar a cultura da Igreja Católica, limitou-se a responder: “Eu salvo estas pessoas, porque merecem ser salvas. São seres humanos.”
Nour, muçulmana, uma das refugiadas sírias que foi para Roma com o Papa, em Abril de 2016, diz no documentário: “Nenhuma mãe escolhe este caminho se não acreditar que a água é mais segura do que a terra.”
O documentário realça ainda as influências benéficas das visitas do Papa a Lampedusa e à República Centro-Africana (RCA). A primeira esteve na origem da operação Mare Nostrum da Marinha Italiana, para resgatar refugiados no Mediterrâneo e permitiu salvar 150 mil pessoas. Já a visita à RCA, dilacerada pela guerra, permitiu que se fizessem eleições e que, durante alguns meses, as populações tenham vivido em paz.
A crise dos abusos e a humanidade do Papa

O assunto que merece maior destaque (perto de vinte minutos, no total, em três momentos diferentes), e também aquele que é mais constrangedor para o Papa, é a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica, sobretudo no Chile. Mas é igualmente o que melhor destaca a humanidade de alguém que também erra, mas pede perdão e tudo faz para corrigir o seu erro, como fez em relação ao que se passou na sua visita ao Chile. Nem que para isso tenha de aceitar a demissão de vários bispos chilenos.
Também não foram esquecidos pelo Papa, e são referidos no documentário, o genocídio dos Arménios, a Shoah, o papel da mulher na sociedade e na Igreja, a desigualdade racial e todo o tipo de discriminação. Sobre a perseguição aos rohingya em Myanmar, vários aparecem a testemunhar sobre o impacto positivo que teve a visita do Papa, em 2017, ao país e ao vizinho Bangladesh, onde muitos sobrevivem em campos.
Sobre os muros antigos e novos que separam países e dividem a humanidade, Francisco é muito crítico. Por isso, o documentário mostra imagens fortes do Papa a rezar junto do muro da Cisjordânia, em Belém, do Muro das Lamentações, em Jerusalém, e do memorial na fronteira entre os EUA e o México, que homenageia os migrantes que perderam a vida a tentar atravessá-lo.
O documentário vai mostrando um Papa preocupado em incarnar naturalmente a frase com que abre a constituição pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.”
Sinal disso mesmo é também o ter assumido, para o seu pontificado, o nome do santo de Assis e a inquietação que lhe é atribuída: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho e se necessário, usai palavras”. A frase que abre o documentário, que defende ainda que Francisco é “o Papa certo no momento certo”.
Uniões civis homossexuais longe de ser o único tema

Este mosaico ultrapassa, em muito, a polémica em torno das declarações sobre a possibilidade de união entre homossexuais, que no entanto teve o condão de chamar a atenção para o documentário. Evgeny Afineevsky, o realizador de Francesco, judeu nascido em Kazan e que emigrou para Israel e hoje vive nos EUA, dedica a essa problemática apenas cerca de dois dos quase cento e vinte minutos do filme.
Também não estamos perante um documentário biográfico de Jorge Bergoglio, embora se façam alusões, ainda que breves, à história de vida daquele que veio do “fim do mundo” para ser bispo de Roma. Refere-se a sua infância e a importância da avó na sua formação cristã; o dia em que decidiu tornar-se padre; o período em que foi o superior provincial dos jesuítas na Argentina, Chile e Uruguai, cargo que assumiu com apenas 34 anos e em que, como o próprio já assumiu, cometeu muitos erros.
Sobre esta fase, o documentário refere que era muito autoritário, pelo que muitos dos seus confrades o detestavam. Embora tivesse alguns que o admiravam, a Companhia de Jesus acabou por enviá-lo para Córdova, uma cidade a norte de Buenos Aires, onde passou dois anos da sua vida, numa espécie de exílio. Mas que, segundo o documentário, contribuíram para moldar a sua humildade e abertura a opiniões divergentes das suas.
O próprio realizador lamentou que “o único assunto” que tantas pessoas viram neste filme fossem os dois minutos em que o Papa fala sobre a questão das uniões civis homossexuais – ainda por cima, essas afirmações foram feitas, em Maio de 2019, numa entrevista à jornalista mexicana Valentina Alazraki, para a Televisa, que na altura não as incluiu e que depois seria colocada na íntegra, na internet.
Ou seja, como se recordou no 7MARGENS, estas declarações do Papa nem sequer eram novas, embora tenha sido a primeira vez que o Papa foi tão assertivo a abordar o assunto. “Sinto-me mesmo com pena, porque o mundo precisa de esperança, neste momento”, disse Evgeny Afineevsky, em declarações reproduzidas pela Global News, criticando a redução do filme a um único tema. O Papa, acrescenta, não pretendia, com aquelas declarações, discutir ou tentar mudar a doutrina da Igreja sobre o tema, mas antes falar sobre “como se pode permitir as pessoas terem a mesma liberdade e de ninguém ser discriminado.
Uma mensagem para o Sul do mundo
O padre Thomas Reese, um dos mais conhecidos e respeitados comentadores dos EUA, escreveu na sua crónica no Religion News Service, que as afirmações do Papa não são novidade e que elas são importantes sobretudo para o Sul do mundo – nomeadamente, África (onde a homossexualidade ainda é crime, em alguns países), Ásia ou mesmo alguns países da América Latina. Aí, sim, “as suas palavras serão política e culturalmente revolucionárias”. Deste modo, acrescenta o padre Francis DeBernardo, do New Ways Ministry (Ministério Novos Caminhos), que ajuda pessoas homossexuais, o Papa não só “protegeu os casais e famílias LGBTQ, como também salvará muitas vidas LGBTQ”.
“O apoio às uniões civis em muitos países africanos abrirá a Igreja ao ataque dos imãs conservadores e do clero cristão. Em países onde as tensões religiosas estão inflamadas, isto não é um problema que os bispos desejem”, escreve o padre Reese. “Se houver um grande recuo nas palavras do Papa, ele virá de África. Recorde-se como as questões LGBTQ têm fracturado a Comunhão Anglicana em África.
Por outro lado, diz, o Papa está apenas a tecer um “juízo prudencial” e não a mudar a doutrina. Os ensinamentos dos papas não têm todos o mesmo nível de autoridade. “Francisco (…) está a falar de direito civil (…). Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, ambos doutores da Igreja, ensinaram que nem toda a moralidade deve ser consagrada na lei. Ambos, por exemplo, acreditavam que era insensato proibir a prostituição, porque a lei não seria observada.”
Comparando com João Paulo II e Bento XVI, estes fizeram, “no seu tempo”, o juízo prudencial “de que as uniões civis eram uma má ideia”. Mas os tempos mudaram: “Francisco está agora a fazer o juízo prudencial de que as uniões civis seriam uma boa ideia para proteger os direitos dos casais homossexuais. (…) O Papa não está a mudar o ensino da Igreja sobre sexo gay, não mais do que a Igreja mudou o seu ensino sobre divórcio e novo casamento quando desistiu de lutar contra a legislação do divórcio no século XX.”
O trailer do filme poder visto a seguir: