
Recreio, de Laura Wandel
Quando este texto for publicado, o mais provável é já não ser possível ir ver este filme a uma sala de cinema. Mas será certamente possível e provável tropeçar nele numa qualquer outra tela. Se assim acontecer, não deixem de ver. E até me parece que vale a pena dá-lo a ver nas escolas.
Recreio, filmado quase sempre à altura das crianças, põe diante de nós, pelo olhar da pequena Nora, a violência e a crueldade que também acontecem na Escola, entre as crianças. Uma violência que será “normal” e que se manifesta de maneiras diferentes, mas que precisamente por isso não pode deixar de nos interpelar e questionar. Talvez não seja esta a imagem que temos e que nos é contada da Escola. Talvez não seja esta a imagem que queremos ter da Escola. Mas vale a pena olhar de frente a realidade e perceber como tantas crianças sofrem em silêncio, para se integrarem, para ultrapassarem os medos, para serem aceites, para serem reconhecidas. E, como sabemos, as crianças, sem serem más, podem ser muito cruéis umas com as outras. Faz parte do crescimento, e é assim que vão “conquistando” e aprendendo o seu lugar no mundo e na relação umas com as outras. Mas a questão para mim é a mesma da realizadora, Laura Wandel, que diz que “de uma certa forma, o filme é uma metáfora do mundo dos adultos”. E acrescenta: “Há o jogo dos territórios, a necessidade de se integrar, de ser reconhecido. Problemáticas que afligem os humanos, crianças ou adultos. Queria que o meu filme fosse um espelho do mundo, de uma forma global.” Por isso, o filme tem como título original Un Monde (“Um mundo”).
Mas deixem-me citar ainda estas palavras da realizadora na entrevista ao JN, de 24 de Junho: “Para escrever o filme passei bastante tempo no recreio de escolas e a falar com professores. E com um psiquiatra, especialista em violência na escola, que afirma que uma criança que é violenta é uma criança em sofrimento. Que a sua violência é sempre uma reação a qualquer coisa. Que tem uma ferida que ainda não foi reconhecida e que a violência é a única maneira de manifestar qualquer coisa que não está bem consigo.”
E faço esta citação para falar ‘dos adultos’, que parecem – quase todos – não saber como lidar com esta “violência normal” nas crianças. Seja o pai – a mãe nunca é referida – sejam as auxiliares de educação e até professores. Parece que estão (quase) sempre fora, desatentos e incapazes de dar conta do que se passa realmente.
O filme Recreio começa com Nora, no seu primeiro dia de escola, cheia de medos, e o seu irmão Abel a dizer-lhe que tomará conta dela, no recreio. Afinal, será ela que assumirá, angustiada, o cuidado pelo irmão, vítima da violência dos colegas, mas a tentar aguentar tudo, para ser aceite e reconhecido. Ela levará tempo a entender isso.
Como escreveram vários críticos, estamos perante um filme que nos “agarra pelos colarinhos”, que propõe uma imersão no problema do bullying entre as crianças na Escola, da sala de aula ao refeitório e ao recreio, com o qual é difícil lidar. Filmado com um rigor, uma exigência, uma qualidade e uma delicadeza exemplares.
Não se pode falar do filme sem falar de Nora/Maya Vanderbeque. Absolutamente esplendorosa a mostrar os seus medos, a necessidade visceral de se integrar naquele olhar inesquecível de tão fundo. Perturbador.
Recreio, de Laura Wandel
Título original: Un Monde
Com: Günter Duret, Lena Girard Voss, Simon Caudry, Maya Vanderbeque
Drama; 72 min; 2021; M/12
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar). Este texto foi inicialmente publicado no número de setembro de 2022 da revista Mensageiro de Santo António.