Principais mudanças políticas no mundo muçulmano do Afeganistão ao Irão, passando pelo Sara Ocidental e pelo Líbano. Velhos e novos protagonistas entram em cena.

Forças e milícias armadas governamentais preparam ofensiva contra taliban, na província de Jowzjan, em 2021. Foto © Abdulbasir Ilgor (VOA) derivative work: Berrely, Public domain, via Wikimedia Commons.
Adoram o Deus único, veneram o mesmo profeta (Maomé), respeitam as mesmas cidades sagradas, fazem os mesmos gestos em oração voltados para um único local. São 1600 milhões de irmãos na fé espalhados um pouco por todo o Globo. Pacíficos. Mas, como muitas famílias, têm dificuldade em manter-se unidos em prol de um bem maior. E as suas desavenças, com frequência, deixam o mundo em suspenso e marcam a História.
O ano de 2021 fica marcado pela entrada triunfal dos taliban em Cabul, culminar do seu avanço ao longo de todo o Afeganistão, ocupando o vazio deixado pelos norte-americanos e os seus aliados ocidentais. País com mais de 40 milhões de habitantes e de maioria muçulmana, o Afeganistão é conhecido como o “cemitério de impérios”, um título que lhe custou destruição e morte.
A chegada dos taliban a Cabul e a ocupação do Palácio governamental a 15 de agosto só surpreendeu os mais crédulos e/ou distraídos: as negociações entre os taliban e os enviados do então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sem representantes do governo de Cabul, eram o sinal de que os EUA iriam partir e da pior forma: aliás, as imagens da saída dos norte-americanos da capital afegã trouxeram à memória abandonos seus, sem honra nem glória, de outros teatros de guerra.
O regresso dos taliban marca o fim de duas décadas de guerra que deixaram o país em ruínas, um número sempre demasiado grande de vítimas mortais, mutilados, órfãos e toda uma população receosa do seu próprio futuro. É que os afegãos conhecem os novos senhores do poder.
Sob a liderança da Al-Qaeda e do mullah Omar, os “estudantes de teologia” já controlaram Cabul e o Afeganistão. E se não fosse o ataque às Torres Gémeas, em Nova Iorque, a 11 de setembro de 2001, provavelmente o país continuaria a ser governado por estes muçulmanos radicais, castradores da liberdade e da cultura que, aliás, cometeram o maior crime arqueológico da história ao destruírem os Budas de Bamiyan.
Os novos senhores do poder instalaram o seu emirado islâmico e afirmaram à comunidade internacional que não iriam criar um regime repressivo como no passado; tinham aprendido a lição. Declararam usar e aceitar as redes sociais e a televisão, mas restauraram o Ministério dos Crimes Morais, orientam o trânsito de metralhadora em punho e não querem ouvir falar de igualdade de género nem de qualquer mulher a desempenhar um cargo público ou, simplesmente, a estudar.
A população, especialmente jovens e mulheres, protesta na rua contra a crise humanitária que o país vive, criada pela guerra, a seca, a pandemia, a falta de bens essenciais que está a condenar milhões à fome, muitos deles crianças, e sem acesso aos cuidados de saúde mínimos, incluindo a vacina contra a covid-19. Recentemente, a Organização da Cooperação Islâmica (OCI), reunida sob a presidência do Paquistão, discutiu a situação no Afeganistão e criou um fundo para enfrentar a pobreza e a fome. Foi ainda lançado um apelo para que os taliban tenham acesso às reservas do Banco Central, uma questão que vai depender do poder em Cabul.
O ano de 2022 será decisivo para o Afeganistão xiita, que será um dos grandes temas do ano. Para conseguir o apoio, mais do que necessário, da comunidade internacional, em especial dos EUA, os taliban vão ter de moderar-se e rever a sua aliança com o Daesh/Estado Islâmico que, obviamente, irá querer transformar o Afeganistão num novo centro de formação para o fundamentalismo internacional, como o fez no passado a Al-Qaeda.
Cabul já garantiu que não deixará que o Afeganistão, de onde continuam a fugir milhares de pessoas, seja transformado num centro de jihadismo; mas a comunidade internacional não quer só palavras e está pendente das ações afegãs. É que já depois de terem chegado ao poder, os taliban foram confrontados com um atentado do Estado Islâmico junto ao aeroporto de Cabul, que fez mais de 200 vítimas.
Renascer das cinzas

Enquanto Ashraf Ghani, o chefe de Estado afegão que foi surpreendido pela saída dos americanos, desapareceu de cena com a chegada dos taliban à capital, o Presidente sírio Bashar al-Assad, que controla 75% do país, regressou à arena regional e internacional. Um regresso intimamente ligado à crise aguda ocorrida no vizinho Líbano que pôs de novo este país à beira de uma nova guerra civil.
Em agosto de 2020, uma violenta explosão no porto de Beirute fez mais de 200 mortos e 6500 feridos. As conclusões da investigação da tragédia não agradaram aos libaneses, mal-estar que se juntou ao já existente pela crise económica em que o País do Cedro vive mergulhado há anos. Os protestos, por vezes violentos, não se fizeram esperar e agudizaram-se quando o país foi atingido pelo black out por falta de energia.
Jordânia e Egipto, com o apoio dos EUA, decidiram agir para ajudar o Líbano, e a Síria apanhou o comboio. Reunidos em Amã, os ministros do Egipto, Jordânia, Líbano e Síria assentaram que o gás natural egípcio chegará ao Líbano, através da Jordânia e da Síria, para minorar a crise de energia libanesa. O facto de Damasco ser alvo de sanções por parte de Washington podia invalidar a cooperação síria, mas responsáveis libaneses pediram aos Estados Unidos para abrir uma exceção. Isso fará com que Damasco – também em plena crise económica – consiga também receber gás e eletricidade.
A crise libanesa está, porém, longe de solucionada. Recentemente o secretário-geral da ONU, António Guterres, visitou Beirute e lançou um apelo aos líderes locais para realizarem reuniões formais com o Fundo Monetário Internacional com vista à marcação de eleições.
O Líbano, que é um cadinho de religiões – cristãos maronitas, ortodoxos e católicos, muçulmanos sunitas e xiitas, drusos – tem sido, e continua a ser, alvo de influências externas que lhe têm dificultado a existência. O vizinho Irão, segundo várias fontes, através do Hezbollah (partido no poder em Beirute) vai manietando, a par com a Síria, a vida política do Líbano que, em consequência, tem mantido diferendos com os inimigos de Terão (Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos).
Idêntica situação tem acontecido no Iraque, também em crise e onde os protestos pró-democracia e a favor de melhor qualidade de vida juntam na rua jovens que se recusam a ser xiitas ou sunitas, só querem ser iraquianos livres e decisores do seu destino.
O ano que agora termina fica ainda marcado pelo regresso da guerra ao Sara Ocidental e, em consequência, pelo corte de relações entre Marrocos e a Argélia. Foi também o ano em que se tornou óbvio que o príncipe herdeiro da Arábia Saudita pode mandar matar um jornalista saudita num consulado do seu país em território turco; arranjar o seu casamento com uma criança de 11 anos, e manter-se como pedra fundamental no jogo político internacional.
A dificuldade do diálogo

A administração Trump anulou o esforço que fora feito pelas suas antecedentes no sentido de levar o Irão a reduzir a sua capacidade nuclear e abrir as suas instalações a inspeções internacionais.
Anos de diálogo e de tentativas a favor da paz mundial foram anulados com uma simples assinatura. Na Casa Branca está hoje um novo Presidente, o mesmo acontecendo em Teerão.
Só que enquanto Joe Biden, segundo fontes concordantes, quer avançar com o diálogo e, se possível, retomar o acordo existente, em Teerão, o conservador Ebrahim Raisi , assim como o líder supremo, ayatollah Ali Khamenei, não parece ter qualquer interesse em regressar ao diálogo interrompido. Na realidade, existe uma possibilidade de 2022 ser palco de um novo impasse entre as partes, o que poderá facilitar uma nova escalada nas ameaças mútuas.
Lumena Raposo é jornalista.