
“Há quem diga que a ideia de Trindade lembra que Deus não é solitário, mas a mais alta expressão do dinamismo do amor, em que ‘eu’ e ‘outro’ se confundem.” Foto © Paolo Gaetano.
É uma historiazinha popular. Certo sacerdote, no momento da homilia, avança para o púlpito e declara: “Celebramos hoje o maior mistério, o da Santíssima Trindade; e como não percebo nada disto, não vai haver homilia.” (Referida no livro de Hans Küng Existe Dios? – tradução espanhola do original).
Foi honesto como poucos. Porém, se é verdade que a existência do mundo e a vida também são um mistério, não é por isso que deixamos de nos interrogar, de recolher experiências e de especular. Mas se queremos ser honestos como o “padre mudo”, só podemos falar deixando bem claro que por muito que andemos à volta com Deus, só conseguimos mais interrogações; e se muita gente, grandes pensadores e místicos, nos enriqueceram com a sua “experiência de Deus”, todas essas experiências são necessariamente limitadas e “inefáveis”.
Por isso, é com muita razão que se diz que a maneira mais profunda de falar sobre Deus acaba por ser a da inspiração poética.
Mistério, dizem alguns dicionários, é o que desperta curiosidade devido ao secretismo e carácter inexplicável. É uma definição discutível, pois tanto é causa de sublimes aventuras humanas como de receios e angústias, de desprezo ou indiferença comodista. A palavra provém do radical indo-europeu mu, imitativo de um som inarticulado. Daí provém “mudo” e “murmurar”, verbo onomatopaico provavelmente da mesma origem que o inglês mum (silencioso) e mumble (produzir sons imperceptíveis); em grego, myo significa fechar-se, fechar os lábios e os olhos (cf. “miopia”). O que está de acordo com o facto de “mistério” ser um conceito central em grupos esotéricos e recorrente ao tratarmos de assuntos extremamente difíceis de explicar ou “transcendentes”.
Como muitos conceitos, pode adquirir sentido pejorativo (irracional, demagógico, sem significado…). No entanto, exprime bem o sentimento de que há muito mais do que aquilo que vemos e sabemos – daí que sejamos “seres insatisfeitos”, questionadores da razão de ser de todas as coisas, da raiz de tudo o que existe.
O dogma da Trindade só ficou formulado no século IV e a festa litúrgica só foi introduzida no século XIV. A especulação em causa resulta do casamento (louvável, por princípio) entre o pensamento cristão e o pensamento filosófico do classicismo grego, em que Agostinho de Hipona (século V) se esmerou e que Tomás de Aquino (século XIII) “aristotelizou”.
Se não se ficar “mudo”, convém reflectir como a experiência de Deus ao longo dos tempos só pode ser saboreada quando enriquecida e actualizada com a experiência e pensamento dos tempos novos.
Mas não será atrevimento em demasia querer ir além do mistério tremendo daquele Deus que se apresentou liminarmente como “Eu sou aquele que é” (Livro do Génesis 3, 14) – o fundamento da existência, aquele que não pode ser explicado?
Sê-lo-á, se não temos a humildade de reconhecer que o conceito de “trindade divina” ou de “Deus trino” não é mais do que o esplendor da nossa reflexão sobre Deus. Mas pretender equacionar “a lógica interna” de Deus complica de tal modo a simplicidade divina que só aumentamos as sombras do nosso conhecimento.
Deus está acima da razão, mas não contra a razão. Justamente por isso é tão perigoso cair na tentação de impor meras especulações como verdades absolutas: várias cisões no cristianismo e desentendimentos com o judaísmo e o islão provêm de se querer defender uma definição de Deus, muitas vezes usando a violência, em vez de defendermos a união à luz de Deus. A ideia de que “só a nossa religião” é a “única verdadeira” e de “revelação divina” é a causa principal das dissensões e guerras entre religiões (ou incentivadas por elas) e no seio delas próprias.
Temos infeliz exemplo na história do cristianismo, discutindo a relação (!) entre Pai, Filho e Espírito. A sentida necessidade de divinizar Jesus de Nazaré e qual o seu lugar na “Trindade” originou cisões internas que ainda perduram.
Do ponto de vista religioso, as tentativas racionais só têm valor na medida em que nos ajudam a aproximar de Deus como “o grande parceiro” para a vida, como aquele que, no Livro do Êxodo (3,12) se apresenta: “Eu sou o que está contigo.”
Sempre guardei muito apreço à tradução que alguns exegetas propõem como igualmente aceitável para Iavé (IHWH): “Eu sou aquele que serei.” Dá relevo à “transcendente historicidade” de Deus no desenvolvimento da Humanidade perscrutadora do grande mistério.
Há quem diga que a ideia de Trindade lembra que Deus não é solitário, mas a mais alta expressão do dinamismo do amor, em que “eu” e “outro” se confundem. Dizer isto é afirmar que a força do amor tem forma divina, mas nada nos diz nem poderia dizer sobre a “estrutura” de Deus. Deus “faz família” e convida-nos a dar do nosso tempo para “fazer família” com os outros e com Ele.
A festa da “Santíssima Trindade”, que a Igreja Católica assinala no próximo dia 12, bem que poderia ser considerada a festa da relação entre as pessoas, das “relações humanas” que só se aguentam se se esforçam por isso. A festa da união: “que todos sejam um” (João 17, 11), à semelhança da união de Jesus com o Pai. A festa do ecumenismo, em que todos nos enriquecemos com experiências diversas do único Deus – o “misterioso apaixonado” pela Humanidade.
“Deus é amor” – mas o amor é “inquieto” e muito para além das nossas capacidades de definição. O maior bem do amor é poder senti-lo sempre novo (e sempre fugidio…).
E quando se está mesmo bem (ao jeito de namorados), não é verdade que até apetece deixar-se ficar sempre “mudo”?
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.