
Loja dos Jogos Santa Casa, em Lisboa (2017). Cerca de 100 mil pessoas em Portugal têm problemas de dependência de jogo com as raspadinhas. Foto © Joehawkins, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
Durante o minuto que demorei a escrever esta frase, foram gastos 2.700 euros em raspadinhas. Durante os, digamos, cinco minutos que demorará a leitura desta crónica, serão gastos no país 13.500 euros em raspadinhas. Durante todo o dia de hoje, nada mais nada menos do que 4.000.000 (sim, quatro milhões) de euros irão direitinhos para a compra de raspadinhas. E o mesmo amanhã. E depois de amanhã. E depois, e depois, e depois… Ao fim de um ano, o gasto nesta “lotaria instantânea” ascende a 1,4 mil milhões de euros. Até é difícil contar os zeros de tal quantia.
É quase como ir ao pão. Assim, diário, normal, rotineiro. O sítio onde eu vou todas as manhãs comprar pão é uma padaria / pastelaria, daquelas que vendem pães de múltiplas qualidades, bolos e pastéis diversos, além de uns salgadinhos de comida rápida – rissóis, lanches, chamuças, fatias de pizza. Mas também, imagine-se, raspadinhas… Sim, raspadinhas. Muitas, muitas, muitas. Não há dia em que, estando eu na fila para comprar os meus pãezinhos, não ouça quem vai à minha frente: “Eram cinco padas de centeio e uma raspadinha, daquelas de 2 euros”. “Dois pães italianos e duas raspadinhas, por favor”. “Queria um ‘pão da avó’ e meia broa de milho, por favor. E uma raspadinha, das de 5 euros”. Não há dia em que não. Ir às raspadinhas é quase como ir ao pão. Comprar aqueles papelinhos que prometem um ganho imediato é um gesto diário, normal e rotineiro para muita gente. Muita mesmo: um estudo recentemente divulgado aponta para cerca de 100 mil pessoas em Portugal que têm problemas de dependência de jogo com as raspadinhas. E são, vejo eu na minha padaria / pastelaria, sobretudo mulheres que compram e raspam. Sobretudo mulheres, e não as mais novas. E, desculpem a indiscrição, muitas delas permitindo adivinharmos que não são gente rica, longe disso.
Porquê?
O referido estudo, desenvolvido por dois investigadores da Universidade do Minho, dá algumas pistas para se compreender melhor esta situação. Por exemplo (e cito do jornal Público): “(…) uma pessoa com rendimentos entre os 400 e os 664 euros tem três vezes mais probabilidades de ser jogador frequente de ‘raspadinha’ do que quem aufere mais de 1500 euros.” Por exemplo: “(…) quem tem o ensino básico tem quase seis vezes mais probabilidade de ter esse mesmo comportamento do que quem tem um mestrado ou doutoramento.” Por exemplo: “(…) as pessoas mais velhas, com 66 anos ou mais, apresentam o dobro da probabilidade de serem jogadores frequentes de ‘raspadinha’, comparando com a faixa etária entre os 18 e os 36; e um operário tem 2,5 vezes mais probabilidade de recorrer a este jogo com frequência do que as pessoas que têm profissões que implicam uma formação superior”. Como diz um dos autores do estudo, Pedro Morgado, trata-se de “uma população particularmente vulnerável e para a qual temos todos, enquanto sociedade, de ter um olhar muito particular, no sentido de minimizar os danos que o jogo pode estar a causar.”
A grande capacidade de atração da raspadinha, diz quem sabe, é o retorno imediato que ela proporciona. Isto no caso de se ganhar alguma coisa, claro… Porque, nas mais das vezes, não há retorno nenhum para os nossos bolsos, de onde saíram 2 ou 5 ou 10 euros. Mas quando se ganha alguma coisa, ganha-se logo. De tal forma que, frequentemente, quem ganha alguma coisa vai de imediato gastar o que ganhou em novas raspadinhas, para ver se ganha muuuuuito! E esse é o problema: é raríssimo alguém ganhar muito. Mas nem por isso o jogo perde o seu sortilégio. Como diz um dos investigadores do estudo atrás citado, se a uma pessoa saem 5 euros, ela acha que ganhou cinco euros, mesmo que já tenha gasto 10 euros… Fica tudo como que esquecido para trás; é o último episódio que se guarda na memória, mesmo sendo uma ilusão. Por isso tanta gente gasta tanto dinheiro tantas vezes. Pela expectativa – mais ou menos ilusória – de um retorno imediato. Quem nunca?…
A questão não é eu ou tu ou ela comprarmos uma raspadinha de vez em quando. A questão é ficar-se agarrado àquilo. É viciar-se naquilo. É não conseguir parar, a não ser quando o dinheiro voou todo do bolso para fora. E isso, pelo que soubemos agora, afeta seriamente mais de 100 mil portugueses – dos quais uns 30 mil com um grau de dependência que é já patológico e reclama tratamento sério. Muita gente mesmo. E muita gente muito frágil, muito carenciada, muito precisada de sonhar com uns euritos mais para o dia-a-dia, muito sem perspetivas de futuro. E as dependências são como sabemos que são. Quem as sofre passa a precisar da “droga” como de pão para a boca. Todos os dias. Todos. Num círculo vicioso infernal que nunca se sabe bem como parar, mas que nos come por dentro em vez de sermos nós a matar a nossa fome.
(Merece referência positiva o Conselho Económico e Social – CES – por ter tomado a iniciativa de encomendar este estudo e de, com ele, pressionar agora para que se faça alguma coisa. Desde logo, todo o país fica a saber a dimensão do problema. Já não se pode dizer que não se sabia. Mas esse é só o primeiro passo, claro.)