
“Como se pode explicar a completa ausência de uma disciplina de lógica nos cursos de teologia e ciências religiosas em Portugal? Que teologia estamos a fazer e ensinar em Portugal?” Foto: Karl Barth © Barth Studies, University of Aberdeen
Nas palavras do filósofo Jc Beall, “a teologia cristã é uma teoria de Deus”. Ora, quando se constrói uma teoria de Deus (ou seja, uma teologia), começa-se por adicionar algumas verdades ou axiomas sobre Deus como, por exemplo, que Deus é trinitário, que Jesus Cristo é simultaneamente divino e humano, que Deus é omnipotente, entre outros. Ora, tal como sucede com outras teorias da física ou matemática, se na teologia queremos construir uma teoria verdadeira, deve-se construir uma teoria o mais completa possível. Por isso, para se fazer uma teoria de Deus (isto é, uma teologia) não se pode ficar apenas com os axiomas iniciais de que Deus é trinitário, que Jesus Cristo é simultaneamente divino e humano, que Deus é omnipotente, etc. Pelo contrário, a teoria de Deus, para ser completa, deve conter igualmente tudo o que se segue dos axiomas da teoria. Por outras palavras, deve conter todas as consequências do que é afirmado na teoria.
É aqui que entra a lógica. Pois na lógica estuda-se o que se segue do quê, ou seja, as relações de consequência. Com a lógica queremos saber quando temos um bom ou mau raciocínio, um argumento válido ou inválido. Nomeadamente visa-se responder à seguinte questão sobre a relação de consequência: O que podemos concluir a partir de uma ou mais afirmação ou axiomas que temos? Assim, a partir dos axiomas iniciais de uma teoria de Deus (ou seja, de uma teologia), o que se segue?
Para ilustrar esta última questão recorro a alguns filósofos, como J. L. Mackie, que defendem que os axiomas da teoria de Deus conduzem a paradoxos ou incoerências em relação aos atributos divinos, tal como o da omnipotência. Um desses raciocínios utilizado por Mackie é conhecido tradicionalmente como o “paradoxo da pedra” e milita contra a omnipotência divina. Podemos resumir esse raciocínio desta forma: Deus pode criar uma pedra que é impossível de levantar ou não pode criar essa pedra. Por um lado, se Deus não pode criar essa pedra, ele não pode fazer tudo (ou seja, não a pode criar). Por outro lado, se Deus pode criar essa pedra, então ele não pode fazer tudo (ou seja, não a pode levantar). Mas, se Deus é omnipotente, então pode fazer tudo. Logo, Deus não é omnipotente.
Seguindo a lógica clássica (em que se aceita, entre outros, a lei da não-contradição e a lei do terceiro excluído), a conclusão “Deus não é omnipotente” é uma consequência lógica das premissas e axiomas (de que a omnipotência é o poder para fazer tudo), isto é, não há qualquer interpretação em que as premissas são todas verdadeiras e a conclusão falsa. Como responder a este desafio?
Como resposta, há muita discussão e desacordo na filosofia e teologia sobre se a lógica clássica é realmente correta e se as leis lógicas podem ou não ser revistas. Um dos principais debates é entre excepcionalismo e anti-excepcionalismo. Por um lado, o excepcionalismo é a ideia de que a lógica é especial, sendo que as leis e inferências básicas da lógica são válidas porque são analíticas (isto é, são verdadeiras apenas em virtude do seu significado). Dessa forma, as inferências lógicas não são suscetíveis de revisão ou de escrutínio, dado que nenhuma evidência empírica, nem sequer teológica, poderá colocá-las em questão. Vários teólogos e filósofos da religião aceitam o excepcionalismo; é o caso de Alvin Plantinga, no seu livro Warranted Christian Belief (Oxford University Press, 2000, p. 146) que advoga que os princípios lógicos são crenças apropriadamente básicas, “a priori”, não sujeitas a revisão.
Nesta perspetiva, a investigação teológica é sujeita a normas e restrições da lógica; por isso, se houver algum conflito entre a teorização teológica e as leis da lógica (como acontece no caso do paradoxo da pedra), essa teorização teológica deve ser revista ou dissolvida, mas não a lógica (dado que a lógica é o alicerce de toda a teorização racional). Por exemplo, em relação ao argumento do paradoxo da pedra, para não se estar comprometido com a ideia de que simultaneamente Deus pode e não pode fazer tudo, o que seria uma violação da lei da não-contradição da lógica clássica, pode-se tentar redefinir o que significa ser “omnipotente” ao defender-se, tal como faz Tomás de Aquino na Suma Teológica (I, 25, a.3), que não é exigido que Deus faça o que é logicamente impossível de forma a ser omnipotente.
Por outro lado, de acordo com o anti-excepcionalismo, a lógica não é especial, havendo uma semelhança entre os métodos da lógica e os métodos teóricos da ciência. Assim, tal como a ciência, a lógica está sujeita a revisões com base em considerações relacionadas com a simplicidade, poder explicativo, unidade, fecundidade, adequação à evidência, etc. Ou seja, como W. V. O. Quine defende no livro Philosophy of Logic (Harvard University Press, 1986, p. 100), “a lógica não é, em princípio, menos aberta à revisão do que a mecânica quântica ou a teoria da relatividade.” Uma dada teoria lógica pode ser revista por considerações semânticas (por exemplo, com base no “paradoxo do mentiroso” que aparece por exemplo na carta de São Paulo a Tito [1, 12-13]), científicas (como no caso da rejeição do princípio da distributividade com base no que acontece no mundo quântico), metafísicas (como no caso da rejeição da lei do terceiro excluído motivada por conceções presentistas sobre a metafísicas do tempo), mas também devido a considerações teológicas.
A esse propósito, há vários filósofos da religião e teólogos que seguem o anti-excepcionalismo ao sustentarem que os sistemas lógicos devem ser passível de revisão porque podem ser desafiados em bases teológicas, tal como faz Karl Barth no livro Die christliche Dogmatik im Entwurf (Kaiser, 1927, p. 217) ao defender que a lei da não-contradição é inválida na teologia, ou como fazem mais recentemente A. J. Cotnoir e Jc Beall no artigo “God of the gaps: a neglected reply to God’s stone problem” publicado na revista de filosofia Analysis (2017) ao advogarem uma teologia com base numa lógica não-clássica paraconsistente e dialeteísta como forma de solucionarem paradoxos teológicos (como o paradoxo da pedra) e cristológicos (como o problema lógico da encarnação). Neste contexto a lógica emerge como uma ferramenta essencial na teorização teológica. Por isso, fica o espanto e interrogação: como se pode explicar a completa ausência de uma disciplina de lógica nos cursos de teologia e ciências religiosas em Portugal? Que teologia estamos a fazer e ensinar em Portugal?
Domingos Faria é professor auxiliar no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto