O pecado cheira a sexo

| 9 Dez 2020

É mais do que evidente que as religiões – em particular as monoteístas – sempre encontraram enormes dificuldades em lidar com a questão da sexualidade humana, tendo por isso provocado muita exclusão, punição, incompreensão e dor ao longo da História. Não era necessário.  

 

“Pergunto-me tantas vezes se essa tendência da tradição judaico-cristã não decorrerá do texto genésico, onde diz que, depois de pecar, Adão e Eva se perceberam nus e idealizaram um avental de folhas de figueira para cobrirem as suas ‘vergonhas’ ”. Pintura: Lucas Cranach – Adão e Eva, 1530. Museu Nacional de San Carlos (México) / wikimedia Commons

 

De facto as religiões abraâmicas nunca souberam lidar de forma natural com a sexualidade humana. Na tradição cristã o pecado cheira a sexo. Parece que a escravatura, a exploração dos pobres pelos poderosos, o racismo, a xenofobia, a subjugação da mulher por uma organização patriarcal das sociedades, o roubo, as ofensas corporais, a violência doméstica, o genocídio, o comércio de armas de guerra, a fuga ao fisco, a pena de morte, o falso testemunho, a calúnia, a difamação, e tantos outros pecados não têm importância nenhuma quando comparados com as questões da sexualidade.

Estas tradições religiosas atiram-se aos pecados relacionados com a sexualidade com afinco, como se fossem os piores de todos. Pergunto-me tantas vezes se essa tendência da tradição judaico-cristã não decorrerá do texto genésico, onde diz que, depois de pecar, Adão e Eva se perceberam nus e idealizaram um avental de folhas de figueira para cobrirem as suas “vergonhas”. Vergonhas? Tenho tentado entender se era mesmo um avental, uma tanga reduzida ou outra coisa qualquer que apenas cobria os órgãos genitais ou outras partes do corpo.

De todo o modo, como pode algum cristão chamar “vergonhas” a partes do corpo humano que cumprem funções tão nobres e essenciais à sobrevivência da espécie? Bem ia o apóstolo Paulo, apesar da sua aparente misoginia, ao comparar a Igreja ao corpo humano, sublinhando a sua unidade, assim como a importância e valor de todos os membros sem excepção. Melhor ainda quando diz: “Antes, os membros do corpo que parecem ser os mais fracos são necessários. E os que reputamos serem menos honrosos no corpo, a esses honramos muito mais; e aos que em nós são menos decorosos damos muito mais honra. Porque os que em nós são mais nobres não têm necessidade disso, mas Deus assim formou o corpo, dando muito mais honra ao que tinha falta dela. Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros. De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele” (I Coríntios 12:22-26).

Assim, a ideia de considerar impuras ou vergonhosas determinadas partes do corpo não procede da genuína doutrina cristã estribada nas Escrituras, mas de uma cultura religiosa que se deixou afectar por conceitos espúrios à fé e influenciados por uma construção ideológica de tipo patriarcal.

Freud teve a clara percepção de que o sexo seria pedra de tropeço no comportamento humano e explorou essa ideia até à exaustão. Embora a certa altura tenha caído no exagero, a verdade é que terá sido o primeiro a entender a dificuldade da cultura religiosa e das convenções sociais em lidar com a sexualidade.

Esta autêntica tara pode estar também na base da dificuldade de algumas pessoas em entenderem a natureza de figuras bíblicas como Jesus ou Maria. Em particular no caso de Jesus Cristo, por exemplo, no esforço para sublinhar a traço grosso a sua natureza divina, a religião quase apagou a condição humana que lhe era igualmente inerente. Aliás, o chamado mistério da identidade de Jesus de Nazaré constituiu uma polémica teológica que durou cerca de quatro séculos a resolver, no seio da Igreja, até que se concluiu que nele coexistiam ambas as naturezas – filho do Homem e filho de Deus.

Se fora divinamente gerado, pelo Espírito Santo, também nascera do ventre duma mulher. Se viera dos céus, conforme o testemunho do próprio Deus durante o baptismo por João: “E, sendo Jesus batizado, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre ele. E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mateus 3:16,17), também assumiu a condição humana, no dizer de João Evangelista: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (João 1:14). E este “habitou entre nós” significa que veio armar a sua tenda no meio do acampamento da Humanidade. E por isso viveu como homem sem deixar de ser Deus. Como homem comeu e bebeu, chorou, riu, foi a casamentos, passou fome e sede. Como disse S. Agostinho “(…) imune a todo o pecado, experimentou a fragilidade humana à semelhança da carne de pecado”.

Cada vez se comprova mais que o menosprezo pela dimensão humana de Jesus retira profundidade ao sentido da fé para as pessoas de hoje, que custam a identificar-se com uma espécie de super-homem ou semi-deus, incapaz de compreender as suas fraquezas. Talvez por isso tantos criadores e escritores, como Maria Teresa Horta, tenham abandonado a fé na sua adolescência, em resultado duma tradição e prática religiosas castradoras do humano e que chegam a soar a absurdo, mas persistam ainda atraídos pela iconografia cristã e seus referenciais para o resto da vida.

 

José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na página digital da revista Visão.

 

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