” Tudo se apagará num segundo (…).
Nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome,
cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.”
Annie Ernaux, Os Anos [1]
Annie Ernaux ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2022. Até essa altura nada conhecia desta escritora francesa e tive curiosidade em me actualizar. Sabia que grande parte dos seus livros tinham um toque autobiográfico, algo que de antemão me agradava pois penso que a vida real – a nossa e a dos outros – é um manancial de aprendizagens que constantemente destroem as ideias feitas que herdámos ou que nós próprios construímos. Antes de a ler sabia que esta autora escrevera grande parte das suas obras estabelecendo uma relação directa entre a História e a sua história de vida, fazendo jus à relação muito apreciada pelos franceses entre a Histoire e a petite histoire.
Talvez tenha escolhido mal, mas os dois exemplares com que iniciei a minha leitura não me deram vontade de prosseguir na companhia da escritora. Escolhidos ao acaso na Livraria Francesa onde compro grande parte dos meus livros, adquiri (sem qualquer informação prévia) L’atelier Noir e L’événement. Devo dizer que embora por razões diferentes não consegui acabá-los. O primeiro é um testemunho do modo como a autora escreveu as suas obras, falando das suas hesitações, das experiências que pretendeu e pretende fazer, das personagens que focou e que irá focar. Para o apreciar exigira ter algum conhecimento prévio da escritora pois ela constantemente fala da relação do que escreve – ou do que irá escrever – com episódios da sua vida, com projectos que pretende realizar, com análises críticas do que já fez. É um livro bom para estudiosos da sua obra e a própria A.E. reconhece que “há algo de perigoso ou mesmo de impudico em desvelar deste modo os traços de um corpo a corpo com a escrita.”[2] Acredito que seja uma obra de grande interesse para quem se debruça sobre estudos de literatura, mas para mim que comprara o livro com o desejo de ler um bom romance, confesso que foi uma decepção.
Por motivos diferentes também não consegui chegar ao fim do livro L’évenement. [3] O tema era um aborto empreendido pela autora, descrito de um modo tão realista que a leitura se me tornou chocante.
Com o desejo de me reconciliar com Annie Ernaux abalancei-me a um terceiro livro – Les Années que desta vez li em tradução portuguesa- Os Anos.[4] Numa escrita de grande beleza literária a autora relata-nos a vida de uma mulher francesa, desde a sua infância (passada na província) à velhice onde se mantêm vivas as suas recordações. E a partir delas revivemos, com a autora a mutação sofrida de ambientes e de mentalidades. A provinciana que surge no início do livro transforma-se numa citadina, os gostos mudam e, consequentemente também o “modus vivendi.” Há referências, sempre personalizadas, à política mundial francesa, às alterações de mentalidade, aos gostos, aspirações e novos interesses, aspectos através dos quais nos apercebemos não só de uma evolução pessoal como das transformações da sociedade francesa da época, ou seja, a factos que nos ajudam a compreender o que se passou na Europa nesse tempo de profundas mutações.
O livro termina com uma espécie de resignação sobre o que é envelhecer. As diferentes vozes que nele se cruzam – as da infância, juventude, maturidade e velhice – traçam-nos o retrato de uma mulher que viveu bem a sua época, que a apreciou com um olhar crítico e que, no entanto, se manteve fiel às suas crenças e aspirações. O final é um levantamento das cenas marcantes da sua vida, das paisagens contempladas, das aspirações e dos desejos que perduraram, embora transformados pelas vicissitudes sofridas.
É um livro belíssimo que me reconciliou com a autora e me levou a prosseguir no conhecimento da sua obra, facto que não aconteceria se me tivesse ficado pelos dois primeiros volumes que referi no início deste texto.
[1] Annie Ernaux, Os Anos, tradução de Maria Etelvina Santos, Lisboa, Porto Editora, 2022, pg. Livros do Brasil, pg. 16
[2] Annie Ernaux, L’atelier Noir, Paris, Gallimard, 2022, pg. 18.
[3] Annie Ernaux, L’événement, Paris, Gallimard, 2000. Trad. portuguesa O Acontecimento, Porto Editora, 2022.
[4] Annie Ernaux, Les Années, Paris, Gallimard 2008. Os Anos, trad. Maria Etelvina Santos, Porto Editora, 2020. (As citações feitas seguem esta versão).
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática (aposentada) de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.