“Dado que o Natal acontece sempre e em todo o lado, dado que o Natal diz respeito à mais pequena coisa e a cada acontecimento, de repente torna-se óbvio que não é o nascimento de Deus que deve ser apresentado ao mundo, mas vice-versa, é o mundo que deve ser conduzido para a entrada e para a gruta; devemos colocar tudo diante do Menino Jesus, cada objeto, cada pequena coisa, cada homem, e devemos dizer: eis aqui o João, ou a Marisa, ou o Paulo, ou o Tomás, apresentem-se, por favor. E também todos os animais, do inseto ao elefante, à girafa, devem ser trazidos para o berço como se fosse a arca. E por último será necessário trazer aqui todo o resto do existente, bom ou mau (a única razão deve ser o mero facto de existir), e, portanto, as guerras e a extração do carvão, os jogos de futebol e as inundações, os bancos e as estações, as eleições democráticas, a inflação, a violência nas famílias, as manifestações do Primeiro de Maio, a haute couture, as férias em sela, as coleções de carros antigos, a psicanálise e a física nuclear, a literatura e as artes modernas: é urgente mostrar tudo ao presépio e acreditar que a sua ordem de cortar a respiração fundirá tudo numa única imagem, reunirá tudo num único mecanismo, apertará tudo em seus braços num movimento repetido que ligará para sempre tudo a tudo”.
Olga Tokarczuk, “Il Presepe di Bardo”,
in Che Guevara e altri racconti, Forum ed. 2006. Tradução livre do italiano.

A cidade de Bardo, lugar de peregrinação, fica a cerca de oitenta quilómetros de Breslávia (Wrocław, Polónia). Na época do Natal, o presépio panorâmico móvel, na cripta do santuário mariano, é motivo de atração.
Muitas vezes o olhar de um descrente sobre o presépio é tão surpreendente e inovador que é capaz de desmascarar a banalidade dos gestos que repetimos com a melhor das intenções. É tão repentino que determina uma desaceleração, um lento reiniciar, um voltar atrás e dar solenidade ao que confessamos, olhando o pormenor com mais atenção, sem nada excluir, ficando apenas disponíveis a aprender dos detalhes, para daí subir à totalidade.
Penso no olhar que Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da Literatura, colocou no centro do seu conto “O Presépio de Bardo”, escrito nos inícios do ano dois mil.
Na cidade polaca de Bardo, na Baixa Silésia, na cripta do santuário mariano local, existe um presépio panorâmico, em movimento, realizado nos anos setenta por um monge. Mas isso é apenas o ponto de partida para o poder mágico da invenção literária. Na história de Olga o presépio fantasia é muito mais fabuloso do que aquele real: ao presépio imaginário, elaborado pelos jesuítas, no século XVI, não faltam sequer maravilhosos efeitos mecânicos e movimento, composto por quatro cenas com uma estrutura circular que o torna quase infinito, dentro de um cubo com quatro fachadas de dois metros cada uma. A ideia com que se fica aproximando-se daquela misteriosa e infinita vitrina é a de uma torre de observação da qual se pode espiar o universo inteiro, condensado, oferecendo-se à atenção do olhar “na fantasmagórica riqueza de perspetivas, histórias, visões radiantes e planos modelados no tempo por mãos diversas”, como alguém escreveu.
O presépio paroquial de Bardo é muito mais pequeno e pode ser visitado na cripta do santuário pagando um bilhete de ingresso e, neste sentido, parece um presépio sem graça, artificial, inalterável e, de consequência, sem vida, ainda que muito artístico. Por estranho que possa parecer, o presépio sonhado e literário de Olga é o mais verdadeiro de entre os dois, mesmo que esteja fechado dentro de uma caixa de vidro.
A este propósito é interessante anotar o que o filólogo Maurizio Bettini escreveu num estudo histórico-antropológico sobre a tradição do presépio. Diz ele que “museificar” as imagens da Sagrada Família, dos Magos e dos pastores significa roubar-lhes uma sua dimensão essencial: a da manipulação, no sentido de poderem ser tocadas, preparadas com as mãos, movidas e personalizadas. O verdadeiro presépio – diz Bettini – é o construído manualmente, pessoalmente, em casa, sem adulterações, não aquele que se vai visitar a um museu. A magia do presépio está, precisamente, no facto de ser um rito doméstico, manual, que cada ano pais e filhos fazem e desfazem em conjunto, empenhando-se totalmente, familiarmente, em construir. Um presépio não pode ser órfão de família.
O presépio utópico e fantástico de Olga Tokarczuk é um presépio com mais verdade que o presépio real de Bardo graças a Maria Kowalska, a sua guardiã. Maria chegou a Bardo em 1946, viúva, e na noite de Natal perde o seu filho. Quando nasce o menino Jesus, morre o menino de Kowalska. E a partir desse dia, Maria dirige toda a sua atenção, desvelo, amor e zelo maternal ao presépio. Atenção, desvelo, amor e zelo maternal que eram destinados ao seu filho. Maria passa os dias diante do presépio, limpa-o, contempla-o agachada diante do vidro espreitando os detalhes tal como uma mãe faz com o seu menino recém-nascido. Maria faz daquela custódia um berço e do presépio um filho muito amado.
Com uma guardiã assim aquele presépio é, sem dúvida, um verdadeiro presépio, o presépio de alguém, um presépio não museificado, mas pessoal e doméstico. Era o presépio de alguém que dia após dia o modelava com novos detalhes, enriquecendo-o de novos contornos e novas cenas. Era um presépio-verdade, um presépio-vida, um presépio-casa.
Na metáfora que Olga tece, o Presépio de Bardo é como uma carta que a humanidade dirige a Deus para lhe dizer quem somos e como vemos o mundo a partir de baixo. Santo Agostinho dizia que os Salmos eram cartas que o Senhor escrevia à humanidade para acender nela o desejo de tornar a casa. O conto de Olga Tokarczuk sobre o presépio é como uma carta que a humanidade escreve a Deus para que Ele não se esqueça deste vale de lágrimas.
Naquela carta/grito, Maria não se esquece sequer de elencar o mal que atravessa os seus dias a fim de que Deus esteja ao corrente e consciente disso: eis, então, entre uma cabana e uma fileira de querubins aparecer um vagão de mercadorias que transporta seres humanos; eis, então, praças cercadas por arame farpado; pequenas forcas; homens com batas brancas manchadas de sangue saídas de uma cena de fuzilamento de inocentes, etc. Anjos, vítimas, assassinos: a Deus que nasce como menino é urgente apresentar cada coisa que existe e que vive, cada coisa boa e cada coisa má, para que Ele tudo abrace, num abraço eterno de ternura.
Maria Kowalska, imagem da outra Maria, a Mãe sem o seu filho, que se comove diante do presépio, que ama e adota o presépio como filho, merece que Deus esteja ao corrente disso, merece aquele abraço de eterna ternura.
(O conto “O Presépio de Bardo” de Olga Tokarczuk (Sulechòw, 1962) faz parte do livro “Che Guevara e altri racconti” da Forum editore, 2006, e foi inserido no livro Racconti spirituali, organizado e comentado por Armando Buonaiuto, ed. Einaudi, 2020.)
Mário Rui de Oliveira é padre, autor de O Livro da Consolação, e trabalha em Roma.