
Jesus foi morto por fazer o bem a todos. Reprodução: Edvard Munch, Public domain, via Wikimedia Commons.
Dois casos relativamente recentes provocaram indignação e revolta em muita gente. O primeiro foi o episódio de um conhecido fotógrafo suíço, René Robert, de 86 anos, que caiu inanimado numa rua do centro de Paris, cerca das 21h30, vítima de ataque cardíaco e durante nove longas horas ficou no chão, numa artéria movimentada mas sem que alguém o ajudasse. Morreu de hipotermia com temperaturas a rondar os zero graus.
Quem deu o alerta no dia seguinte foi um sem-abrigo. Alguém escreveu que foi “assassinado pela indiferença”. O segundo foi o caso do primeiro-ministro inglês, acusado de ter permitido resgatar do Afeganistão 200 cães e gatos, mas deixado pessoas para morrer, que eram colaboradores do exército britânico, escolhendo assim salvar vidas de animais em vez de seres humanos.
O que é que nos aconteceu? Porquê esta indiferença? A Bíblia chama-lhe “pecado”. Pecado é tudo o que “erra o alvo”. Mas vamos tentar compreender melhor o que aconteceu. O texto bíblico do evangelista Mateus (12:1-14) conta que Jesus passou com os discípulos pelas searas num sábado, e estes, tendo fome, começaram a colher espigas e a comer, o que desagradou aos fariseus, os quais consideraram tal acto uma transgressão da lei de Moisés.
Com base nisso o Mestre da Galileia explicou-lhes que a tradição e os preceitos religiosos não podem ser considerados mais importantes do que a satisfação das necessidades prementes das pessoas. O episódio seguinte que Mateus descreve, a cura dum homem com a mão mirrada em plena sinagoga confirmou a ideia e enfureceu os religiosos que começaram a planear matar Jesus.
Há factores que ajudam a explicar esta indiferença pelas necessidades e dores do próximo que caracteriza a humanidade.
O formalismo moral substituiu a misericórdia. Como se vê pode promover a fome (caso das espigas), e pode até impedir o alívio do sofrimento alheio (cura no sábado): “Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes” (v7). Estamos nós a negar misericórdia em nome duma determinada moralidade?
A religiosidade substituiu o amor ao próximo. A religiosidade pode promover a indiferença e contribuir para provocar a morte. Veja-se a estória do bom samaritano, onde o sacerdote e o levita não arriscaram salvar a vida daquele homem ensanguentado para não se tornarem cerimonialmente impuros e portanto impedidos de ministrar no templo de Jerusalém. Estamos nós a substituir o amor por preceitos religiosos?
A indiferença substituiu o cuidado pelo outro. A indiferença despreza as Escrituras: “Ele, porém, lhes disse: Não tendes lido o que fez Davi, quando teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, e comeu os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos que com ele estavam, mas só aos sacerdotes?” (v3-5). A indiferença despreza o valor do outro: “Pois, quanto mais vale um homem do que uma ovelha?” (v12a), como no caso supracitado do Afeganistão, e pode mesmo matar (caso de Paris). Estamos nós a ser indiferentes ao cuidado pelo outro, à semelhança de Caim? (“sou eu guardador do meu irmão?”, Génesis 4:9).
O individualismo substituiu o interesse da comunidade. O individualismo gera egoísmo, como na teoria do darwinismo social (sobrevivem os que melhor se adaptam na sociedade). Estamos nós a agir com egoísmo? S. Paulo diz que o amor “não busca os seus interesses” (I Coríntios 13:5b).
O populismo político e religioso substituiu a compaixão. O populismo destrói a empatia para com os mais fracos e as minorias (normalmente mais vulneráveis). O populismo (de direita ou de esquerda) vira uns contra os outros e quer impor a toda a sociedade, à força, um conjunto de princípios éticos particulares. Estamos nós a sacrificar a compaixão em nome duma ideologia, seja ela política ou religiosa?
É sempre tempo e momento para fazer o bem: “É lícito fazer bem nos sábados. Então disse àquele homem: Estende a tua mão. E ele a estendeu, e ficou sã como a outra” (v12-13).
Depois de tudo fazer o bem ainda pode prejudicar o benfeitor: “E os fariseus, tendo saído, formaram conselho contra ele, para o matarem” (v14). Jesus foi morto por fazer o bem a todos…
Os cristãos não se podem conformar com a decadência moral do ser humano. Têm que brilhar e fazer as obras de Jesus.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum.