“O que diz o Espírito às igrejas” – Acerca de uma carta aberta à Conferência Episcopal

| 4 Set 2022

relatorio de portugal sinodo

 

Uma “Carta Aberta Sobre o ‘Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023’” (CA), a recolher assinaturas nas redes sociais! Aí está um desafio que promete incendiar os ânimos. Convenhamos que a primeira fase do processo sinodal decorreu de forma relativamente morna, entre nós.

Comecemos pelo essencial. Na homilia que proferiu no consistório de 27 de agosto, o Papa Francisco referiu-se, a certa altura, ao “pequeno fogo […] aceso pelo próprio Jesus, perto da praia, enquanto os discípulos estavam nos barcos e puxavam a rede cheia de peixes. E Simão Pedro chegou primeiro, nadando, cheio de alegria (cf. Jo 21, 7). O fogo do carvão é suave, escondido, mas dura muito tempo e é usado para cozinhar. E ali, na margem do lago, ele cria um ambiente familiar onde os discípulos desfrutam, maravilhados e emocionados, a intimidade com seu Senhor.”[1] A iniciativa foi de Jesus, Pedro aproximou-se primeiro, juntaram-se então os outros discípulos e trouxeram mais peixe para a refeição. Acrescente-se “a chama poderosa do Espírito de Deus, é o próprio Deus como ‘fogo devorador’ (Dt 4, 24; Hb 12, 29), Amor apaixonado que purifica, regenera e transfigura tudo”, e aí temos uma belíssima imagem do processo sinodal.

Seguem-se as minhas achas para esta fogueira fraterna:

  1. A minha primeira reação à síntese apresentada pela CEP foi, como a dos signatários da CA, a vontade de puxar do teclado e propor alterações. Mas fui primeiro passar os olhos pela imprensa católica internacional, onde percebi que, segundo o cardeal Mario Grech, uma síntese geral dos relatórios recebidos circulará, no outono de 2022, para discussão ao nível das igrejas locais. Portanto, reações imediatas como a minha, ou a da CA, são para já extemporâneas.
  2. Contudo, mesmo nessa nova fase de discussão local, não fará sentido reivindicar a exclusão de pareceres com que não concordamos. Os lineamenta que sairão desse longo trabalho para o sínodo dos bispos de outubro de 2023, deverão, a meu ver, refletir a pluralidade de opiniões dos mil e tal milhões de católicos espalhados pelo mundo. Só assim os bispos poderão desempenhar a sua vocação de construtores de pontes, procurar consensos, corrigir desvios sem “apagar a torcida que fumega”, fomentar a unidade de todos na fé dos apóstolos, e remendar a vasta rede de caridade que Deus lança sobre o mundo para a salvação de todos.
  3. O mal-estar que eventualmente sentimos por a Conferência Episcopal (CEP) ter recolhido no “Relatório de Portugal ao Sínodo” expressões que não são nossas, ou que, na opinião dos signatários da CA, são mais do mundo que da tradição da Igreja, é uma consequência natural do inovador processo adotado. Se a CEP tivesse selecionado as respostas ao Vademécum, acolhendo-as de acordo com uma pressuposta reta doutrina, excluindo ou podando as diferenças, a enorme diversidade de formações, vivências e sensibilidades que observamos na Igreja em Portugal estaria a ser considerada uma ilusão de ótica; e a CEP estaria a dizer, na próxima fase continental e a Roma, que em Portugal os católicos pensam todos do mesmo modo. Note-se que, por essa via, os subscritores da CA – ou outros como eles – correriam o perigo de ver, nessa uniformização, afastadas as suas próprias perspetivas. A seleção – para não dizer censura – das respostas, como prática institucional, levaria a prazo as várias escolas e sensibilidades teológicas – que legitimamente existem entre nós, e desde sempre na tradição católica – a disputar o controlo desse processo. E aí, sim, abríamos o caminho na Igreja à disputa do poder próprio das democracias e autocracias do mundo.
  4. Moralmente mais grave, no entanto, nessa hipotética “normalização” das respostas perante uma consulta sinodal, seria a apresentação de uma falsa narrativa pela autoridade episcopal. Tanto aqui como ao nível doutrinal se aplica a palavra-mandato do Senhor: “A verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). No caso em apreço: a verdade de quem são e do que disseram os membros da comunidade. Se os enviados das autoridades, no tempo de Jesus, tivessem a noção deontológica de que deviam ajustar os seus relatórios à sensibilidade e doutrina de quem os enviou, os desafios lançados por João Batista e Jesus, os seus apelos à “mudança de mente”, teriam sido limados à partida, e não teria havido conversões, nem martírio, nem paixão; e todos estariam bem “como Deus com os anjos”.
  5. Como eu, os autores da CA encontraram no Relatório algumas das suas bêtes noires favoritas e a tentação imediata é perder de vista o conjunto do processo sinodal. Trata-se, afinal, como o nome indica, de um “relatório” da consulta feita, não de um documento de doutrina. Pela natureza das coisas, portanto, praticamente ninguém se reverá em tudo. É bom lembrar, a esse respeito, que no séc. XIX perguntaram a Newman se era legítimo na Igreja Católica consultar os leigos sobre questões de doutrina. O então padre oratoriano, especialista em estudos patrísticos, publicou a sua resposta num célebre artigo (1859), lembrando que no século IV momentos houve em que a maioria dos bispos se mostrou favorável a formulações doutrinais sobre a natureza do Verbo posteriormente rejeitadas como heresia. Nessas alturas, observava Newman, a verdadeira tradição da fé dos apóstolos foi conservada não pela hierarquia, mas no sentir da fé do comum dos fiéis. Mas como identificar essa vivência pelos fiéis da fé dos apóstolos, sobretudo em tempos de controvérsia? Como descobri-la na vida e devoção de quem a encarna no quotidiano, mas provavelmente não a saberá formular senão em termos da sua cultura geral? Dada a importância nevrálgica da questão, Newman começa o artigo por analisar o uso que fazemos do verbo “consultar”. A palavra, afinal, não é unívoca. Consultar o papa, o colégio episcopal, ou as escolas teológicas sobre questões de doutrina tem hoje regras consensuais que o tempo foi decantando. Mas numa auscultação alargada dos fiéis sobre os conteúdos da fé, observa Newman, a palavra deve ser entendida de outra forma. Consulta-se os fiéis como quem consulta um relógio, e não como quem consulta um médico. Nesse sentido, o Relatório da CEP dá-nos conta do estado atual desse grande “relógio” que são os fiéis da Igreja Católica em Portugal. Para sabermos a “data, hora e minuto”, ou seja, o estado atual da encarnação do evangelho entre nós, haverá agora que distinguir o essencial do secundário, ler o que dizem os “ponteiros”, e interpretar a informação que nos fornecem. Por outras palavras, se não tolerarmos a imprecisão da linguagem e a contaminação do ambiente; se não contemplarmos o “abismo”, o “informe”, o “vazio” (Gn 1,3); se não soubermos detetar a nova criação que neles germina, como havemos de discernir por onde sopra o Espírito?
  6. A título de exercício mental, se a “normalização” precipitada da vivência e linguagem dos fiéis tivesse sido aplicada noutras épocas, teriam, provavelmente, sido eliminadas com a espuma religiosa e cultural do tempo as propostas mais controversas, os desafios mais exigentes, as formulações mais audazes da vida cristã a que hoje devemos uma renovação evangélica da Igreja em momentos críticos da sua história. Onde estaríamos hoje se não tivesse havido, por parte de alguma autoridade da Igreja, a grandeza de alma e o discernimento para perceber, entre tantos outros, o carisma de um Antão do Egipto, de um Francisco de Assis, de um Inácio de Loyola, de uma Teresa de Ávila, de um João da Cruz, de um José Maria Escrivá, de um Joseph Cardijn ou de uma Teresa de Calcutá?
  7. Em nome de uma determinada eclesiologia e leitura da história, que nos dariam pano para mangas noutro tipo de reflexão, os autores da CA relativizam a consulta alargada aos fiéis e destacam a responsabilidade da hierarquia na Igreja Católica, por ter sido ela mandatada pelo Senhor a assegurar em cada época a transmissão do Evangelho, a fidelidade à Tradição. Mas o Relatório da CEP não põe isso em causa. Pelo contrário: o processo foi lançado pelo próprio Papa, passou pelas conferências episcopais, bispos diocesanos e superiores religiosos e teve em vista, nesta fase, a auscultação dos fiéis. Os relatórios diocesanos, nacionais e continentais registam os procedimentos adotados e os pareceres recebidos. Uma crítica legítima de qualquer desses relatórios, portanto, teria de demonstrar que nele faltam elementos significativos dos pareceres recolhidos. Não faz sentido questioná-los por neles encontramos pareceres com que não concordamos. Em Outubro de 2023, lidos os relatórios, e seguramente ouvidos inúmeros pareceres de peritos e espontâneos, caberá, então sim, ao colégio episcopal presidido pelo Papa discernir o que “diz o Espírito às igrejas” (Ap 3,22).

 

 

Peter Stilwell é padre católico. Foi professor da Faculdade de Teologia e e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e é ex-reitor da Universidade de São José, de Macau.

[1] Homilia no Consistório para a Criação de Novos Cardeais, 27.08.2022.

 

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