[Nas margens da filosofia – L]

O que fazer dos nossos livros?

| 5 Jan 2023

estante cheia de livros, foto engin akyurt pexels

“Que fazer dos quase dezasseis mil livros que ao longo da nossa vida temos comprado e herdado?” Foto © Engin Akyurt / Pexels.

 

Sou uma leitora (e compradora) compulsiva de livros e tenho perante eles um sentido burguês de posse. Confesso que não gosto de os emprestar, e embora o faça muitas vezes fico particularmente afectada quando eles me são devolvidos com páginas dobradas ou com anotações. Talvez isto se deva a uma experiência ocorrida no meu segundo ano da Faculdade, quando fui passar uns meses à Alemanha com o intuito de praticar a língua.

Para dispor de algum dinheiro extra durante a estadia sem estar constantemente a solicitar ajuda aos meus pais, resolvi aceitar um emprego em part time na biblioteca de uma Universidade, em Hannover. Feito o contrato e iniciado o trabalho, verifiquei que a função que me tinha sido destinada era apagar as anotações. De facto, havia muitos livros que ao longo do ano tinham sido requisitados e depois devolvidos com marcas próprias dos leitores – a lápis, a tinta e a esferográfica (estas eram as mais custosas de sair). E assim, durante toda a minha estadia iniciava o trabalho às seis da manhã e acabava ao meio-dia, num afã ininterrupto de lavar capas e apagar as observações dos leitores, bem como os sublinhados e pontos de interrogação. Os meus colegas de ofício eram sobretudo velhos e velhas, bem como alguns estudantes que a Biblioteca tinha contratado para o mesmo serviço.

O que então ganhei (para além da repugnância que ainda tenho por fazer anotações em livros) serviu-me para custear as múltiplas viagens que fiz na Alemanha e na Holanda. Um pormenor curioso: quando me pagaram, tive de preencher uma ficha com múltiplas perguntas e uma delas era a que religião pertencia. Ao colocar uma cruzinha na religião católica, verifiquei que essa informação teve como consequência um abatimento no que me foi pago, sendo uma parte destinada a custear a Igreja Católica na Alemanha.

Na minha juventude, gostava muito de ficção científica e tinha uma especial predilecção pelas obras de Ray Bradbury, nomeadamente por uma que ele dedicou aos livros e à sua possível extinção num futuro próximo. Refiro-me a Farenheit 451.[1] Agora que tenho netos, alguns deles também leitores e todos igualmente amantes de cinema, achei por bem organizar uma sessão de vídeo para comentarmos em conjunto a leitura feita por François Truffaut sobre esta obra, para mim um filme de culto que vi e revi inúmeras vezes. As reacções não podiam ter sido mais decepcionantes. Enquanto eu me deliciava de novo ao ver o modo como os amigos dos livros conseguiam recuperar os mesmos decorando-os e encarnando as diferentes personagens dos romances, os netos riam na cena patética em que a dona de uma biblioteca se imolava pelo fogo na companhia dos seus livros, para não presenciar o trabalho dos bombeiros. Estes, no contexto do romance (e do filme), invertiam as funções que no nosso universo lhes são atribuídas, encarnando aqui o papel de destruidores de bibliotecas, seguindo o lema de que os livros nos fazem infelizes pois provocam emoções negativas.

Ultrapassado o problema da incompreensão dos netos (que aliás têm gostos de leitura bem definidos, embora diferentes dos meus), volto de novo ao problema dos livros. E agora para o colocar no futuro. Que fazer dos quase dezasseis mil livros que ao longo da nossa vida temos comprado e herdado? Dos meus irmãos recebi praticamente todos os nossos livros de infância pois nenhum pretendia guardá-los. A esses se acrescentam os livros de direito do meu marido, os meus de filosofia e as centenas de obras de história, de literatura, de enciclopédias, de dicionários etc., etc.. A casa de férias tem ajudado a solucionar esta situação e nela guardamos essencialmente a literatura infantil e policial.

Durante uns tempos verifiquei que a biblioteca da minha Faculdade (FLUL)  aceitava doações de livros – os nomes dos doadores  estão afixados numa das paredes da entrada. Passei alguns anos consolada com a ideia de ter o problema resolvido pois nada mais me agradava do que os doar a uma instituição que os apreciasse e lhes desse o destino que merecem. No entanto fui informada de que já não há mais espaço e de que não se aceitam mais livros por impossibilidade de os arrumar.

Nesta passagem de ano em que fazemos um balanço da nossa vida e em que nos confrontamos com as grandes preocupações que o mundo atravessa – a guerra, as alterações climáticas, a fome, as epidemias, a situação das mulheres em muitos países do mundo – o problema que levanto torna-se risível. No entanto, é uma inquietação que recorrentemente me assalta. E que se coloca sempre que compro ou encomendo novos livros, orientando a minha escolha em função dos lugares onde ainda é possível arrumá-los, um critério que, como é óbvio, nada tem de científico.

Desejo a todas e a todos os amantes de leitura um novo ano com mais paz e respeito pelos direitos humanos. E reforço este desiderato convidando à compra de alguns livros que possam ser saboreados com a calma de quem não se inquieta quanto à possibilidade de os arrumar numa estante.

 

Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática (aposentada) de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.

 

[1] Embora haja edições posteriores desta obra, cito o volume que ainda se mantém na minha estante, virgem de qualquer anotação: Ray Bradbury, Farenheit 451, tradução de Mário Henrique Leiria, Lisboa, Livros do Brasil, sem data, 195 pgs.

 

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