
[antes da faca / casca a casca / a brancura refulgente. Foto © Joaquim Félix]
1.
Enquanto ouvíamos a leitura das Escrituras,
não sei se vimos, mas entrámos numa nuvem.
Clara como um rasgão, era dessa nuvem que saía uma voz.
A sua sombra é luminosa, como este lugar o é, a esta hora.
Como quando o sol se acende e deixamos de ver as estrelas,
assim somos cobertos pelo eco da Palavra numa nuvem de não saber,
cujo sentido se assemelha a uma neblina para a nossa fé.
Estamos em subida para Jerusalém e as ‘predições’ perturbam-nos.
Talvez porque ouvimos o testemunho de Moisés e Elias,
que «falavam da morte de Jesus, que ia consumar-se em Jerusalém» (Lc 9,31).
Jesus já no-lo tinha dito, mas agora vemo-lo confirmado pelas Escrituras:
por Moisés, o grande portador da Lei para o povo,
e por Elias, no seu zelo de fogo, em nome de todos os profetas.
2.
Entre o primeiro e o segundo diálogo,
com Jesus ao centro, como silêncio entre ‘batentes’ duma porta aberta,
há detalhes que valem a nossa contemplação.
Por eles o sentido da fé esclarece-se e passaremos a seguir Jesus,
para onde quer que Ele suba, mesmo se para Jerusalém,
com confiança e não perturbados por medo da morte…
Moisés, Elias e Jesus aparecem «em glória» (Lc 9,31 e 32).
Porém, a glória aparecente de Jesus ganha todo o protagonismo.
Enquanto Moisés e Elias, apagados, simplesmente falam com Ele,
Jesus transfigura-se, isto é, metamorfoseia-se:
só o seu rosto muda de aspeto, além da figura, e suas vestes refulgem de brancura.
É uma forma de dizer que Jesus é o ‘alvo’ das Escrituras.
Como uma seta, que atravessa todas suas palavras,
a Ele se dirigem para falar da sua morte e ressurreição.
3.
Em vez de subir sozinho ao monte, como fazia tantas vezes em recolhimento,
Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago.
Conhecemos a relação estreita que Jesus tinha com eles.
Eram os seus amigos íntimos, os primeiros que ele escolheu.
São os mesmo que viriam a estar com Ele no Jardim das Oliveiras,
no qual, enquanto Jesus orava instantemente,
não foram capazes de vigiar sequer uma hora, de tão ensonados que estavam.
Poderíamos imaginar que, por particular amizade de Jesus,
estes três seriam uns privilegiados entre os doze…
E porque não pensar que, mesmo sendo os mais íntimos,
eram os que mais medo tinham e se perturbaram;
quem sabe, porque até tivessem aspirações humanas, entretanto goradas?
4.
Qual será a finalidade – se assim podemos perguntar –
de Ele se ‘metamorfosear’, diante dos seus discípulos, a caminho de Jerusalém?
Leão I, Papa que recebeu o cognome de «o Grande», também conhecido por S. Leão Magno,
diz, num dos seus famosos sermões, qual terá sido o objetivo de Jesus:
«A primeira finalidade desta transfiguração
era fazer desaparecer do coração dos discípulos o escândalo da cruz,
para que a humilhação da paixão, voluntariamente suportada,
não perturbasse a fé daqueles a quem tinha sido revelada
a excelência da dignidade oculta de Cristo» (Sermo 51).
De facto, assim deverá ter sido, porque,
se tivermos em conta o contexto desta passagem evangélica,
verificaremos que, depois da profissão da fé de Pedro (cf. Lc 9, 18-21),
Jesus fez o primeiro anúncio da sua paixão e ressurreição (cf. Lc 9, 22).
E, na sequência de lhes dizer as condições para O seguirem (cf. Lc 9, 23-26),
é provável que alguns tenham sentido vergonha de serem seus discípulos e das suas palavras,
mais perturbados que estariam com o escândalo da sua paixão e morte
do que alegres com o anúncio da sua ressurreição,
para a qual não teriam capacidade de entendimento.
5.
Depois de terem os olhos vendados de sono,
isto é, de incompreensão das Escrituras,
Pedro deixa-se tomar pelo assombro e propõe a construção de três tendas,
colocando Jesus ao nível de Moisés e de Elias.
Porém, como ouvimos, «não sabia o que estava a dizer» (Lc 9,33).
Porque não sabia? Porque tinha chegado a Hora de escutar somente Jesus.
Eis porque os dois homens, Moisés e Elias, se afastaram.
E veio a voz de Deus, desde a nuvem, a confirmá-Lo, como aliás no dia do Batismo:
«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O» (Lc 9,35).
De agora em diante, os discípulos hão de dar toda a sua escuta a Jesus.
Deste modo, «Jesus fica sozinho», torna-se uma experiência inigualável,
isto é, a Voz à qual todo o discípulo presta atenção e escuta em silêncio.
6.
Como seguramente já reparastes,
dei ressonância a palavras do Sermão de um Papa do século V, S. Leão Magno,
que governou a Igreja, de 29 de setembro de 440 até 10 de novembro de 461.
Porquê dar-lhe ainda tanta importância? – Perguntareis vós.
A minha intenção prende-se com o atual momento da história.
Bombardeados com imagens que nos chegam da Ucrânia,
só gestos magnânimos nos poderão salvar da ‘barbárie’ e da ‘perturbação’.
Recordemos, pois, que foi S. Leão Magno quem,
no terminus do Império Romano do Ocidente, protegeu Roma da destruição antecipada.
Na verdade, atribui-se à sua solicitude, no ano 452, em Roma,
o facto ter convencido Átila, o Huno (406-453), a não invadir a Europa Ocidental.
Só para que saibamos, Átila, também conhecido por Praga de Deus e Flagelo de Deus,
foi o último e mais poderoso rei dos Hunos.
Deve-se, também, a S. Leão a contenção das tropas invasoras fora das muralhas de Roma,
que, no entanto, após a sua morte acabaria por ser invadida, no ano 476, pelos Hérulos,
data que assinala a queda do Império Romano do Ocidente.
Da intensa oração que S. Leão Magno fazia com os cristãos,
permanece ainda, no ordinário da Missa, o embolismo do Pai Nosso:
«Livrai-nos de todo o mal, Senhor,
e dai ao mundo a paz em nossos dias,
para que, ajudados pela vossa misericórdia,
sejamos sempre livres de toda a perturbação,
enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador» (Missal Romano).
7.
Nesta Hora difícil da História, é importante não «cair de sono».
Sim, é decisivo conservarmo-nos vigilantes e permitir que Jesus,
presente na Palavra escutada, na Escritura que no-lo dá a conhecer,
nos acorde e nos transfigure o olhar com o seu poder de salvar a história.
Esta Hora, notemos bem, não permite nem dorminhocos nem preguiçosos.
Astrid Lindgren, escritora sueca de livros infantis, disse certa vez:
«O que há de errado em ser preguiçoso? Imagine se a guerra viesse e ninguém fosse lá?».
Como S. Leão Magno, também o Papa Francisco,
que se deslocou inclusive à Embaixada da Rússia em Roma,
tem desenvolvido esforços diplomáticos
para que as cidades ucranianas não sejam implodidas.
E, como ele, tantos chefes de Estado o têm feito.
Oxalá os corações de Putin e dos seus ministros e assessores
se deixem transfigurar pela palavra de Jesus.
Para que não sejam a personificação presente de Caim,
que mata seu irmão Abel, seu irmão da Ucrânia…
8.
O sangue de todos os ucranianos fala mais eloquentemente
que todas as bombas que os russos lançam sobre as cidades.
O grito de uma mãe agarrada ao filho que vive,
enquanto chora o outro morto,
desde a cave do prédio onde vivia,
fala mais alto que os aviões que lançam a morte.
Porque o Senhor ouve a sua súplica,
que ecoa agora na voz do salmista:
«Não escondais de mim o vosso rosto» (Sl 26, 9).
E ainda esta estrofe, do mesmo salmo, que não foi cantada:
«Se todo um exército se acampar contra mim, / não temerá meu coração. //
Se se travar contra mim uma batalha, / mesmo assim terei confiança.» (Sl 26, 3).
9.
Deus levou Abraão para fora de casa, mas não o abandonou.
Antes, deu-lhe uma promessa na qual aprendeu a confiar.
Nesta Hora de sol posto, como sucedeu a Abraão,
somos assaltados por «um grande e escuro terror»,
mas não temamos, porque esta é a Hora da nova Aliança.
Jesus diz-nos para olharmos para a luz da noite,
para contarmos a suas estrelas,
e, como num espelho, verificarmos que somos a promessa cumprida em nós:
somos as estrelas da noite refletindo a luz do rosto metamorfoseado de Jesus,
os nossos olhos enchem-se da «brancura refulgente» das suas vestes,
da alvura da sua palavra e do seu corpo, como «brasido fumegante»,
no fundo cálice do sangue da nova Aliança, que transborda por nós.
E um dia, como peregrinos da Jerusalém do Alto, assim o esperamos,
Ele há de transformar o nosso corpo «semelhante ao seu corpo glorioso» (Filip 3, 21).
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais Triságia.
O texto corresponde à homilia de domingo passado, 13 de março, na liturgia católica; as leituras do dia eram extraídas dos livros bíblicos de Génesis 15, 5-12. 17-18; Salmo 26 (27), 1. 7-8. 9abc. 13-14; Carta de Paulo aos Filipenses 3, 17 – 4, 1 (ou 3, 20 – 4, 1) e do Evangelho segundo Lucas 9, 28b-36 .