
“Há alguns dias, fui incitada a dizer o que era, para mim, a Páscoa. Nessa esmagadora, ou talvez libertadora, impossibilidade, posso saber que apenas vou crendo nela, quando me debruço no parapeito do vivido e sigo, caindo no que não está, mas brilha.” Foto © Ydlabs / Freepik
Há alguns anos, numa mesa de café, uma mulher contou-me uma história. A sua infância acontecera numa casa muito pobre, iluminada apenas por brasas numa lata, num chão de terra. Era sobre estas que, com o dedo, desenhava, e as cores-fogo surgiam na escuridão que rouba as coisas de lugar.
Descreveu-me aquele ritual de criança, a dança quente entre a vida a preto e branco, como um fio de luz ao fundo que nos parece chamar, uma “possibilidade de saída feliz, aquele caminho”, que durante toda a vida procuramos.
Porém, um dia desequilibrou-se dentro desse encantamento e caiu. O seu rosto ficou queimado e as suas pestanas demoraram a despertar. Os seus olhos fecharam-se durante meses, como num tempo suspenso e silencioso, como a terra depois de um incêndio.
Lembro-me de me despedir dela e de descer a Estrela para ir trabalhar, apontando o que me disse. A mulher que caiu dentro de uma promessa de imagens, com três anos de vida, descobriu-se, mais tarde, fotógrafa e artista plástica. Penso, então, nesse episódio como uma espécie de profecia, uma profecia por um triz, porque à beira do desastre. Pela fotografia, mover-se-ia pela vontade de ser testemunha, guardar vestígios do vivo, inacabar, resistir ao que se apaga para sempre.
Este encontro abriu-me uma fissura, a partir da qual pude experimentar aquele consolo que o sentido nos entrega. Ela deu-me a ver o pressentimento que me acontece quando o Sol se põe, o de que há algo que se religa no que se acende e que todo o dia esperou. Os corpos nascem com essa promessa que antecede toda a ruína e que, pela inquietação, pela esperança, resiste nesta, apesar de. Trata-se de uma misteriosa confiança originária de que somos criadas para a Alegria.
Há alguns dias, fui incitada a dizer o que era, para mim, a Páscoa. Nessa esmagadora, ou talvez libertadora, impossibilidade, posso saber que apenas vou crendo nela, quando me debruço no parapeito do vivido e sigo, caindo no que não está, mas brilha.
Raquel Luiz descreve-se como feminista e anticapitalista. É formada em Ciências da Comunicação e Estudos Portugueses. Neste momento, trabalha na área da Educação. Pertence ao movimento Sopro e ao Laboratório de Teatro e Política.