
Vicente Jorge Silva: um jornalismo moderno, ao nível dos melhores do mundo, não poderia prescindir da informação religiosa. Foto © Alfredo Cunha, cedida pelo autor.
Não fosse Vicente Jorge Silva e o Público não existiria. Provavelmente também o 7MARGENS não teria surgido. Esta experiência pequena, débil e frágil deve muito à mestria, argúcia, inteligência e contemporaneidade do olhar que aprendemos com Vicente Jorge Silva, que morreu na madrugada desta terça-feira, em Lisboa.
Certo que o Vicente – assim o tratávamos, entre camaradas de profissão e redacção – também tentou voos enquanto cineasta e fotógrafo (há poucos anos, mostrou várias e belas fotos funchalenses em Lisboa) e fez ainda uma breve incursão na política, como deputado pelo PS. Mas foi pelo seu percurso no jornalismo que muitos ficaram marcados por ele. Nascido no Funchal a 8 de Novembro de 1945, cresceu no estúdio fotográfico da família, o Atelier Vicente’s (hoje Museu de Fotografia da Madeira), fundado pelo bisavô Vicente Gomes da Silva em 1846, continuado pelo avô Vicente Júnior, e pelo pai e tio, Jorge Bettencourt e Vicente Bettencourt, como recorda o Público.
Depois de uma breve passagem por Paris e Londres, Vicente voltaria ao Funchal em 1966, entrando com um pequeno grupo na aventura de refundar o Comércio do Funchal, tinha então 21 anos. Depois do 25 de Abril de 1974, mudou-se para Lisboa, integrando a redacção do Expresso. Aqui chegaria a chefe de redacção e director-adjunto. Mas foi a recriação que fez da Revista, em 1981, como produto autónomo do jornal, e nela publicando grandes textos sobre cultura, actualidade internacional ou sociedade, que provocou o primeiro grande sobressalto na forma de fazer jornalismo em Portugal. Nessa altura, com sete anos de democracia, o jornalismo português ainda não perdera muitos dos atavismos que o tolhiam no cinzentismo e na subserviência ao poder – aos poderes, quaisquer que eles fossem.
Na Revista, trabalhei algumas vezes com o Vicente, e não esqueço um “puxão de orelhas” que me deu por causa de um erro básico que eu, ainda a entrar na profissão, cometera num texto. Mas imediatamente incentivou a que continuasse a sugerir outros temas, textos, trabalhos…
O segundo agitar de águas foi com o Público, fundado em 1989 e cujo primeiro número veio para a rua a 5 de Março de 1990. Ele e o Jorge Wemans convidaram-me para a redacção que iria lançar o jornal, na consideração de que um jornalismo que se pretendia novo, moderno, ao nível dos melhores do mundo, não poderia prescindir da informação religiosa. Já então o Vicente percebia que é impossível entender muitos dos acontecimentos do mundo contemporâneo sem dar conta dos fenómenos religiosos que frequentemente os explicam e provocam.
Pressenti que era imenso o desafio, mas a atenção crítica do Vicente à cultura, à política, à economia e à sociedade, incluía a questão religiosa. O modo como ele ligava com tanta inteligência acontecimentos aparentemente sem relação uns com os outros era brilhante – e acontecia também quando o tema tocava o religioso e a fé.
O seu rasgo criativo, mesmo distante do universo crente e católico, permitiu ter com ele algumas conversas estimulantes, bebendo muitas formas de abordagem dos trabalhos ou do entendimento das pessoas, logo desde a primeira reunião que tivemos, meses antes de o Público aparecer. Tenho presente a forma como ele, quando eu hesitava sobre o título para um trabalho que eu escrevera sobre o II Concílio do Vaticano, se saiu com a solução, logo depois de o ler: “Quando a Igreja desceu à Terra”! Ou como, distante da instituição, observava com argúcia o xadrez, a personalidade e os modos de agir de vários responsáveis, por vezes abrindo-me os olhos para leituras que eu não via e, outras, vindo com humildade conversar comigo sobre algum editorial que tocava a questão religiosa. Um gesto que, a alguém que inicialmente olhava para ele quase com um respeito reverente, dizia muito sobre a sua personalidade, no fim amiga, confiante e próxima.
A memória que hoje, 8 de Setembro de 2020, Portugal e o jornalismo português fazemos sobre Vicente Jorge Silva não ficaria completa sem este detalhe. E os detalhes são aquilo que faz a diferença nas personalidades que marcam uma época e um estilo.