O que se traz em nós depois de entrar em Auschwitz e em Birkenau

| 29 Mai 2023

“Olho para uma fila imensa de fotografias de mulheres. Tento reter-lhes os nomes… Elzbieta, Isabel como eu. As idades. É terrível perceber o tempo decorrido entre a data de entrada no campo e a data da sua morte: em média dois meses.” Foto: Memorial Judaico, Berlim. © Alessio Maffeis / Unsplash

 

Entrei pela primeira vez no Campo de Auschwitz, na Polónia, no passado dia 5 de maio. Na viagem de autocarro que começara na belíssima Cracóvia aumentava a minha ansiedade e não conseguia abstrair-me das minhas perguntas de há tantos anos: como se entra num lugar como aquele, sabendo hoje o que sabemos? O que se sente? O que se traz em nós quando depois fazemos o trajeto de regresso que milhares de outros não puderam fazer? E o que se sente ao avistar a linha de comboio que entra pelos portões de Birkenau como uma linha direta às entranhas do inferno?

Ao cabo de uma hora, avistam-se placas assinalando a chegada a Oswieicim, município com pouco mais de 38 mil habitantes, uma história longeva que remonta à Idade Média, e que é depositário de um dos pedaços mais negros da nossa história comum. Uns quilómetros mais à frente e chega-se ao Museu-Memorial de Auschwitz, a versão germanizada do nome da pequena terra.

Primeiro fico apreensiva pela quantidade de gente e de movimento. Quero entrar ali como se de um ato religioso se tratasse, em silêncio, sem distração. Temo que qualquer coisa em redor comprometa o sentido de reverência que sinto ser o único possível, por respeito à memória, a algo que me ultrapassa.

Depressa percebo que apesar dos muitos grupos, sobretudo de jovens estudantes polacos, reina a contenção. Ali, na fila para as bilheteiras, percebe-se que já é difícil sorrir quanto mais gargalhar. E também se percebe que mesmo estando um sol particularmente quente sobre as nossas cabeças, nenhum de nós se atreveria a queixar-se de um qualquer desconforto, seja o sol na cabeça, a fome na barriga, a bexiga apertada ou o tempo de espera. Mesmo não falando, percebe-se que todos temos consciência do que é estar ali, prestes a entrar num espaço indescritivelmente real. Pelo menos ali, naquele tempo que nos une, não há espaço para a fraqueza dos fanicos individuais.

Transpor o célebre portão de ferro de onde pende a frase em alemão Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”), aperta-me a garganta num nó tal que só poderia desfazê-lo chorando. Mas não o faço, porque sinto que não me posso permitir o privilégio do excesso emocional. Engulo em seco, mordo os lábios e sigo em frente. Como milhares de homens, de mulheres, de crianças que por ali passaram há 80 anos … Mas com a diferença, a derradeira e abissal diferença de eu saber que volto a sair pelo mesmo portão em que acabo de entrar.

Visitar Auschwitz na simetria das suas ruas, dos seus edifícios, em toda a sua lógica de complexo industrial, confirma à sua maneira o que tantos pensadores judeus e não judeus escreveram ao longo do século XX: que o que ali está é uma manifestação de absoluta racionalidade. Não é como gostaríamos talvez que fosse, uma manifestação de loucura, um ato isolado e sem explicação possível da maldade humana. Tudo em Auschwitz é organização e eficiência, o que faz aumentar em mim o sentimento de horror. Num edifício faziam-se experiências nos órgãos reprodutivos de mulheres, em irmãos gémeos; noutro amontoavam-se à noite os corpos esfarrapados, doentes e famintos que conseguiam resistir a mais um dia de trabalhos forçados; noutro podemos ainda ver toneladas de cabelos de mulheres, de roupas e de malas, de óculos, de sapatos… de sapatinhos de criança, de sandálias de menina, tudo ainda com a cor tão viva, tão perto de nós, que quase se pode sentir a vida que os calçou. Tudo tão palpável, tudo tão presente.

Olho para uma fila imensa de fotografias de mulheres. Tento reter-lhes os nomes… Elzbieta, Isabel como eu. As idades. É terrível perceber o tempo decorrido entre a data de entrada no campo e a data da sua morte: em média dois meses. Um pouco mais para os homens. Dois meses: mais ou menos o tempo que leva um corpo relativamente são a extinguir-se, pela fome, pela provação absoluta, pela doença.

As outras fotos que povoam o museu não mostram nem gritos nem dor. Apenas rostos como os nossos também seriam se ali estivessem: apreensivos, mudos, algo confusos, mas sobretudo expectantes. E também tudo isso faz aumentar o sentimento de horror porque sabemos que eles não sabiam. Pudéssemos nós gritar no túnel do tempo e dizer “Fujam! Escondam-se!”

Entro numa pequena câmara de gás, no espaço dos supostos duches higiénicos. Olho o teto e vejo as aberturas quadrangulares de onde saía o mortífero Zyclon-B, o pesticida feito de ácido cianídrico e nitrogénio (ainda lá estão guardadas no museu dezenas de latas do maldito). Encaro por fim os fornos. Achei-os insultuosamente banais, com um ar de inofensivos fornos domésticos e mais uma vez, sinto que o horror de tudo aquilo é ainda mais acicatado pela aleivosia destes pormenores.

Saio com tudo isto que aqui partilho ainda a arder-me nos olhos e com duas fotografias no telemóvel: um nó de arame farpado e um dente-de-leão. Não consigo tirar fotografias a um espaço onde o Diabo andou à solta.

Por fim, Birkenau. Se o Konzentrationslager Auschwitz tinha a ‘vocação’ de campo de concentração e de trabalho forçado, já Auschwitz II em Birkenau a cerca de 3,5 km de distância, é claramente o campo de extermínio. A vocação é só uma: levar por diante a ‘solução final’, a morte em larga escala. Morte de judeus, mas também de ciganos (Roma e Sintis), de homossexuais, de resistentes antifascistas e de outros opositores políticos, de pessoas com deficiências físicas e mentais, de pessoas de credos diferentes (as Testemunhas de Jeová, por exemplo, também foram vítimas do regime nazi, sendo classificados nos campos com triângulos de cor púrpura… havia todo um sistema de classificação por cores… de novo a organização, a racionalidade). Morte de Seres Humanos.

Nos hectares descampados que hoje acolhem flores silvestres, consigo imaginar as centenas de barracas erguidas apenas com a firmeza suficiente para aguentar a presença de homens e mulheres por algumas horas, alguns dias… pouco mais.

E tudo isto aconteceu aqui, na nossa Europa. Não há 2000 anos, não em outro hemisfério, mas aqui, a menos de 3000 km de Braga.

Partilho nesta breve crónica o que vi e senti porque é o mínimo que posso fazer: dar testemunho. Para que não haja a tentação de pensar que o que foi, foi menos ou foi diferente.

 

Isabel Estrada Carvalhais é deputada pelo Partido Socialista ao Parlamento Europeu, professora associada da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e doutorada em Sociologia. Este texto foi inicialmente publicado no Correio do Minho.

 

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