O que vale a vida de Vincent Lambert
Uma verdadeira saga judiciária, com uma impressionante componente dramática, tem ditado o destino da vida de Vincent Lambert. Uma vida que tem estado à mercê de sucessivas e contraditórias decisões de instâncias médicas, judiciais e políticas. Uma saga que não terminou.
Vincent Lambert foi, em 2008, vítima de um acidente que lhe causou graves danos cerebrais e o deixou num estado de mínima consciência. Saber se deve continuar a ser alimentado e hidratado através de uma sonda é o que divide a sua família (os pais e alguns irmãos no sentido da manutenção da sua vida, a esposa e outros irmãos em sentido contrário), os médicos, os tribunais e os políticos. Já por quatro vezes foi ordenada a cessação dessa alimentação e hidratação (ordem que chegou a ser executada, numa das vezes por trinta dias).
No último episódio da saga, com base numa decisão provisória da Comissão da O.N.U. para os Direitos das Pessoas com Deficiência (decisão que não foi acatada pelo governo, com o fundamento de que Vincent não é portador de deficiência, apesar o Estado francês estar obrigado por um tratado internacional a reconhecer a jurisdição dessa Comissão), o Tribunal de segunda instância (Cour d´Appel), revogou a ordem de cessação da alimentação e hidratação cuja execução se iniciara pouco tempo antes. Entretanto, o representante do Estado recorreu dessa decisão para o Tribunal supremo (a Cour de Cassation), cujo veredicto não é ainda conhecido no momento em que escrevo.
Vincent Lambert está vivo, não está em situação de morte cerebral e não é um doente terminal: está há mais de dez anos na situação em que está hoje, em estado de mínima consciência. A sua vida não depende de alguma máquina. Respira autonomamente. Passa pelos normais estados de vigília e de sono. Assimila normalmente os alimentos que ingere. Não está em sofrimento. É provável que tenha algum grau de consciência e estabeleça alguma forma de comunicação consciente (em que medida, não se sabe ao certo). Há exemplos de pessoas em situações análogas que recuperam, pelo menos parcialmente, depois de vários anos.
Deve ser considerado uma pessoa com uma grave deficiência. Contrariando o parecer de outros médicos, um grupo de médicos especialistas no tratamento deste tipo de deficiências, publicou um manifesto no jornal Le Monde de 20 de maio passado, que afirma isso mesmo e que considera obrigatória a assistência que tem sido prestada a Vincent Lambert, não sendo a sua alimentação e hidratação considerada um tratamento inútil ou desproporcionado (uma obstinação terapêutica). Isso mesmo sucede, em França, com cerca de mil e setecentas pessoas que se encontram numa situação análoga à de Vincent Lambert, algumas em unidades especializadas, outras no domicílio.
Sobre este caso, também se pronunciaram vários bispos franceses e, num comunicado conjunto, o prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida e o presidente da Academia Pontifícia para a Vida. Neste comunicado, é evocada a doutrina da Igreja Católica a respeito do dever de alimentação e hidratação como um cuidado básico (não um tratamento) que será de observar, mesmo com recurso a meios artificiais, sempre que dessa forma se atinja a sua função normal sem causar dano ou sofrimento insuportável.
Dar de comer e de beber a Vincent Lambert nada mais é do que prestar esse cuidado básico, que se presta também a qualquer pessoa que, por qualquer motivo, não é capaz de se alimentar sozinha (desde logo, uma criança nos seus primeiros tempos de vida). Deixar de prestar esse cuidado faz com que ele morra não de alguma doença de que padeça e que seja invencível, mas de fome e de sede, com o que isso tem de cruel e desumano (mesmo que se recorra à sedação, como tem sido imposto nas decisões que determinaram a sua morte por inanição e desidratação).
A tenacidade dos pais de Vicent Lambert, que não desistem da sua luta apesar de todos os obstáculos, compreende-se pelo amor que nutrem pelo seu filho, que para eles tem naturalmente um valor incomensurável. Mas já muitos têm sublinhado que o que está em jogo não é só a vida de Vincent Lambert. É, desde logo, o valor da vida de muitas pessoas que se encontram em situações análogas às dele: os familiares dessas pessoas poderão pensar que a sociedade e os serviços de saúde consideram vãos e não merecedores de apoio os seus esforços e sacrifícios. Está em jogo, sobretudo e mais amplamente, o valor que a nossa civilização atribui à vida dos mais vulneráveis. Disseram-no os médicos especialistas subscritores do manifesto publicado no Le Monde a que acima aludi: é a honra da nossa sociedade e o modo como esta trata dos seus membros mais frágeis que está em jogo. E tem sido citada a propósito a frase de Jerôme Lejeune: «A qualidade de uma civilização mede-se pelo respeito que ela tem para com os mais frágeis.»
Na verdade, a vida humana não perde dignidade pelo facto de perder “qualidade”, ou por ser marcada pela doença e pela deficiência. A vida não deixa de merecer proteção por causa dessa doença ou dessa deficiência. E é assim por muito grave que seja essa doença ou essa deficiência. A pessoa no máximo da sua deficiência, no máximo da sua fragilidade, ou no máximo da sua dependência (como sucede com Vincent Lambert), não deixa de ser pessoa com a dignidade que lhe é sempre inerente. Por isso, nunca são em vão, e merecem todo o apoio, os esforços e sacrifícios das famílias e dos profissionais de saúde que prestam assistência a pessoas com deficiências profundas, por mais profundas e graves que sejam essas deficiências. Nem são injustificadas as despesas que essa assistência acarreta. A vida dessas pessoas, como a vida de Vincent Lambert, vale tanto como a vida de qualquer um de nós.
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