
Capa do livro que Carlo Petrini escreveu com o Papa Francisco
“Nunca antes se viu tanta poesia num documento papal como” a que se encontra na exortação Querida Amazónia, do Papa Francisco, diz Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, num dos diálogos que tem com o Papa a propósito de questões como a exploração a que os povos indígenas são sujeitos ou da busca de formas de energia alternativas.
“Sim, mas fui ajudado! Fui ter com os litterati e pedi-lhes: «Procurem-me isto e aquilo…»”, responde Francisco. “Mas houve um contributo que mesmo assim não consegui incluir: um belo refrão de Roberto Carlos que diz: «Mamã, porque é que o rio já não canta mais?»”
O diálogo consta do livro O Futuro da Terra, que é posto à venda nesta terça-feira, 22 de Junho, e do qual o 7MARGENS antecipa aqui um excerto, em pré-publicação.
No início do livro, Petrini conta como, logo em Setembro de 2013, na sequência da ida de Francisco a Lampedusa e de uma carta que lhe escrevera, o Papa lhe ligou. A partir daí, uma sucessão de cartas e conversas ao telefone desembocou nestas conversas com alguém que, assumindo-se como não crente, esteve como observador convidado do Papa no Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia.
No livro, além dos três longos diálogos sobre ecologia integral (tidos em 2018, 2019 e 2020, este último já em plena pandemia), Petrini reproduz uma série de documentos do Papa Francisco relativos a temas que têm relação com os temas abordados nas conversas.

CARLO PETRINI: Da última vez, há um ano, uma parte do nosso diálogo centrou-se no Sínodo Pan-Amazónico que iria ter lugar dali a pouco tempo. Na época, convidou-me a participar nele, e posso agora dizer-lhe a posteriori que foi para mim uma experiência extraordinária. Vivi dias inesquecíveis em que pude observar uma Igreja diferente da que eu imaginava: uma Igreja com os pés assentes na terra, muito viva. Foi uma experiência verdadeiramente bela. (…)
Contudo, encerrar este nosso livro sem fazer uma análise sobre o que aconteceu, va nen bin [o mesmo que «non va bene» em dialeto piemontês: não está certo]! Isto da covid-19 ultrapassa a questão individual, é uma passagem histórica para toda a humanidade: que vive atualmente bastante prostrada. (…) Que ideia faz desta situação?
PAPA FRANCISCO: Usou a expressão «humanidade prostrada», não é verdade? Eu acrescentaria: muitas vezes também espezinhada. Espezinhada por este vírus e por tantos outros vírus injustos que deixámos crescer. Estes vírus injustos: uma economia de mercado selvagem, uma injustiça social violenta, com a qual as pessoas morrem e tantas vezes vivem como animais. Onde a exploração do trabalho está na ordem do dia, onde os povos perdem a sua própria identidade nas mãos dos populismos selvagens que desejam salvá-los através das suas ideias, das suas doutrinas, com o seu doutrinamento… talvez seja demasiado pessimista o que lhe estou a dizer; porém, eu olho para as periferias. Acho que hoje é necessário descentralizarmo-nos. E ir até ali, onde o futuro se joga. (…)
C: (…) Estamos perante a exigência de uma política de base forte (…)?
F: Exatamente, isso é importante. Uma política que diga jamais a uma economia de mercado selvagem, jamais à mistificação da finança, com a qual não se pode contar porque não passa de fumo. Sim a um novo modo de interpretar a economia, a um novo protagonismo dos povos. Jamais aos populismos, quer sejam políticos, culturais ou religiosos. Sim aos «popularismos», através dos quais os povos se desenvolvem, se exprimem com base nas suas próprias características e em comunidade. Jamais ao sectarismo religioso. (…)

C: Há cinco anos, esta situação era inimaginável, e as temáticas tratadas nas partes de maior aprofundamento – comunidade, nova economia, atenção ao problema da emigração, educação e biodiversidade –, que nós escrevemos antes da pandemia, continuam hoje centrais e inalteradas.
F: São precisamente as questões que é preciso enfrentar. Felizmente, começa a haver alguma consciência delas. Como lhe referi anteriormente, no ano passado vieram ter comigo alguns pescadores da zona de San Benedetto del Tronto. Pescadores, mas não de grandes barcos pesqueiros, daqueles navios industriais que fazem tudo a bordo. No ano passado, disseram-me que tinham retirado do mar seis toneladas de plástico, neste ano disseram-me que se tinham interessado mais pela questão e que retiraram 24 toneladas de lixo, das quais 12 eram de plástico. Tomaram consciência e perceberam que deviam limpar o mar.
Aqui no Vaticano, é mais fácil termos essa consciência, porque somos um Estado muito pequeno: por conseguinte, os pesticidas que usamos nos jardins são todos naturais. Mudámos de sistema também no caso da eletricidade: temos agora painéis solares na Sala Paulo VI, que geram energia suficiente para iluminar esta casa. Dentro desta sala, não há plástico, à exceção daquela garrafa de água, que já é velha e está aqui para ser reutilizada, mas à parte esta não há mesmo mais nada de plástico. É uma coisa pequena, mas esta consciência deve ser seguida em todo o mundo.
No ano passado, recebi aqui um grupo de empresários dirigentes de grandes empresas do ramo do petróleo. Disseram-me: «Se neste momento trocarmos o petróleo por outro tipo de energia, haverá uma segunda crise mundial igual à que assistimos na década de 1930!», o que é verdade. Mas é igualmente verdade que será necessária sabedoria para fazer as coisas lentamente, sem acabar com postos de trabalho. Porque o trabalho é como o ar da nossa cultura; sem trabalho o homem fica diminuído. (…)

(…) passados mais de cinquenta anos, o Concílio Vaticano II ainda não foi aceite por muita gente que, pelo contrário, procura retroceder. Sabia que os historiadores dizem que para um Concílio passar a fazer parte da vida da Igreja são necessários pelo menos cem anos? Portanto, estamos a meio do caminho e as reações são ainda muito violentas. E provêm sobretudo de uma conceção do liberalismo económico semelhante à do cristianismo da Teologia da Prosperidade. Mas não é este o caminho. Pelo contrário, o caminho é o da Teologia da Pobreza! Nos Evangelhos, Jesus fala de uma contradição, a única a que dá o nome de «Senhor». Existem apenas dois «Senhores»: um é Deus, o outro é o Dinheiro. E ninguém pode servir a dois «Senhores».
C: Uma escolha de campo.
F: Já no tempo de Jesus! É este o rumo que devemos tomar, não é verdade? Mas continua a perdurar uma certa Teologia da Prosperidade, a qual inspira aquele cristianismo ideológico que vai contra o Concílio… Mas conhece isto melhor do que eu.
C: E como vive esta situação?
F: Em paz, não me tira o sono. E imagine, mesmo sem bagna cauda e talharim…! (…)
C: Há também outra coisa que gostaria de lhe perguntar: hoje em dia, existe uma realidade muito interessante que chamam «dos invisíveis». Designa uma humanidade composta por gente que trabalha nos campos e que vive à margem da sociedade, essa mesma que prefere ignorá-la.
O líder deste movimento é um sociólogo oriundo da Costa do Marfim: Aboubakar Soumahoro, que escreveu na convocação dos Estados Populares: «[…] a unidade dos invisíveis deverá ser uma vocação da nossa consciência coletiva, a qual nos pedirá para quebrar as cadeias do individualismo e abraçar a liberdade da solidariedade. De pousar o peso do Eu para levantar a ligeireza do Nós».
E em seguida, cita inclusivamente uma frase sua, aquela em que diz que Jesus Cristo conheceu os apóstolos no lago da Galileia enquanto estes trabalhavam, e não num congresso, num seminário, ou até mesmo no templo…! Achei esta passagem muito bonita: uma humanidade que não é visível para a política, para o establishment, para as pessoas que contam.
F: Trata-se do povo! Temos de voltar a ter consciência do povo. Experienciamo-lo, por exemplo, nos países mais pequenos, onde ele é mais percetível. Nestes países, as protagonistas da História são as próprias pessoas. É preciso abrir horizontes, deixar que a cultura de cada povo se exprima e que haja uma relação entre as diversas culturas. Uma globalização poliédrica com todas as culturas juntas, e não uma esférica, que elimina todas as culturas.
Temos de fazer ressurgir estas reservas do povo. Pelo contrário, qual é hoje a solução proposta, aquela mais fácil? Os populismos! E que fazem os populismos? Propõem uma ideia e enleiam o povo nela, semeando o medo – por exemplo, o medo dos emigrantes provém dos populismos; e os discursos de certos líderes políticos de alguns países caminham efetivamente na direção de um populismo perigoso.
Saiu recentemente um livro, deverei tê-lo ali (indica o seu quarto e a sua estante). Se o encontrar, ofereço-lho, para que o possa ler. É um livro que compara os populismos atuais e os dos anos 1932–33 na Alemanha. Leia-o e depois devolva-mo. É uma análise lúcida sobre aquilo que está a acontecer agora, sobretudo na Europa. [Trata-se do ensaio de Sigmund Ginzberg: Sindrome 1933, Feltrineli, Milão, 2019.]

C: Sim, com certeza. Porém, há ainda outra coisa que lhe queria perguntar, retomando a Querida Amazónia, que eu considero ser um documento de uma incrível beleza, porquanto concilia afetividade em relação a esta Terra e à sua população, poesia e visão política. Que opinião teve desse Sínodo? (…)
F: Relativamente ao Sínodo propriamente dito, penso que foi importante para promover uma consciencialização. Por exemplo, foi criada a Conferência Eclesial da Amazónia e – graças a esses aparelhos modernos que não sei como se chamam – tiveram o primeiro encontro onde escolheram os seus dirigentes. (…) Estão a trabalhar bem! Houve aqui quem pensasse que se lhes devia impor regras. Mas não! Deixemos a vida surgir por ela própria. (…)
C: É verdade, o Sínodo foi um momento deveras importante. De altíssima espiritualidade, mas também de altíssima política. Há muito tempo que não assistia a uma discussão tão profunda. (…) a atenção geral estava a concentrar-se unicamente na questão dos viri probati, enquanto o verdadeiro cerne era outro, e bem mais importante! Aqui está, dói-me realmente muito pensar que hoje aquelas populações estejam a ser postas em causa e a ser alvo de um genocídio: estão a morrer aos milhares.
F: Sim, ainda que a palavra «genocídio» não seja aplicável na sua verdadeira aceção.
C: Efetivamente, talvez seja exagerada.
F: Não em sentido figurado, nesse caso pode ser usada. Sim, porque esta gente está a ser molestada. Molestada pela tecnologia, molestada pela economia, molestada pelas multinacionais. São os rejeitados. Hoje em dia, existe a política do descarte. Não nos esqueçamos disso. Descartar a vida, descartar os povos que não têm nada para nos dar, que não produzem. Descartar, descartar… Descartar os velhos, que são a sabedoria de um povo. (…)
Por isso mesmo é que eu insisto tanto no diálogo entre os velhos e os novos, os idosos e os novos. A geração dos pais perdeu muito, perdeu muito com esta cultura do bem-estar, perdeu a memória das suas raízes, contudo, os velhos ainda a possuem. E nós temos de incentivar esta transmissão dos velhos para os novos.
C: De resto, foram as nossas avós a razão pela qual nós dois nos conhecemos, o nosso elo. Falava-me da Sua avó e eu a Si da minha. E é verdade que ambas tinham raízes muito sólidas. A minha avó, uma profunda católica de Bra, casou com Carlo Petrini, o meu avô, ferroviário socialista e fundador do Partido Comunista local. Quando, em 1948, os comunistas foram excomungados, ele já tinha morrido, mas a minha avó foi confessar-se. «Em quem vota?», perguntou-lhe o padre. E ela respondeu-lhe que votava comunista, como o seu pobre marido. O padre disse-lhe que não podia dar-lhe a absolvição. Ao que a minha avó, depois de pensar um pouco, lhe retorquiu: «Guarde-a então para si!»
F: Sabedoria, era sabedoria!
C: Não era fácil dizer em 1948 a um confessor: «Guarde a absolvição para si», porque ela era muito católica!
F: «Guarde-a para si!» (Ri) Foi um modo muito delicado de o mandar passear!
(Riem) (…)

Aproveito também para partilhar consigo outra experiência pessoal: tive um grande professor de filosofia – de filosofia, hein! – que uma vez me disse que qualificava e media um homem pela sua capacidade de brincar com as crianças. Se um homem não sabe brincar com as crianças, então não é um homem maduro.
C: Foi um filósofo que lho disse?
F: Exato, filósofo e professor de metafísica. E por isso mesmo, eu, enquanto confessor, quando vinham casais confessar-se, perguntava-lhes: «Quantos filhos têm?», e eles ficavam com medo que a seguir eu lhes dissesse: «E por que razão não têm mais?» Pelo contrário, a minha pergunta era esta: «Brincam com os vossos filhos?» Pergunto-o sempre que estou a confessar um casal, um homem ou uma mulher. Por causa do excesso de trabalho ou do cansaço, os pais frequentemente afastam de si os filhos, quando, ao invés, deveriam passar mais tempo com eles… É essa a verdadeira poesia! Se um pai não for um poeta, não saberá educar bem um filho, porém, com esta poesia da gratuitidade, conseguirá fazê-lo.
C: A propósito de poesia, diga-me então uma coisa, a última: nunca antes se viu tanta poesia num documento papal como a que existe na Sua Querida Amazónia. Qual foi a inspiração?
F: Sim, mas fui ajudado! Fui ter com os litterati e pedi-lhes: «Procurem-me isto e aquilo…», mas houve um contributo que mesmo assim não consegui incluir: um belo refrão de Roberto Carlos que diz: «Mamã, porque é que o rio já não canta mais?»
C: Este seu documento, Querida Amazónia, é muito bonito de se ler. Não digo que os outros documentos papais não o sejam, mas este incute paixão. E a poesia ajuda! Faltava só esse refrão do Roberto Carlos, que não é nada mau…
F: Sim, é um belo refrão!
C: Muito bem, diria que fechámos com chave de ouro estas reflexões. Sua Santidade, muito obrigado por esta conversa e pelo tempo que me dedicou. Mesmo sendo eu um agnóstico!
F: Bom… O importante é sermos coerentes connosco próprios. Se formos coerentes, então não há problema. Os fariseus eram incoerentes!
C: (Ri) «Va bin, va bin.»