
Pôr do sol em Taizé. “Só na oração podemos ouvir a Sua voz e discernir o caminho.” Foto © Taizé.
É curioso notar que na agenda dos contributos apresentados no âmbito do Sínodo [da Igreja Católica], convocado pelo Papa, a justiça e a interioridade sejam temas tão secundarizados.
Entre as várias legítimas e fundadas preocupações apresentadas, a justiça social parece ter sido remetida para um plano muito secundário no contexto português. Facto que não pode deixar de merecer preocupação se considerarmos o nível de empobrecimento médio registado nas últimas décadas em Portugal. No âmbito das diversas campanhas eleitorais e, atualmente, quando registamos uma maioria parlamentar estável, é perturbador constatar a ausência de planeamento e visão estratégica de futuro. A governação é pensada por mandatos de quatro anos, em vez de se optar por uma ótica de planeamento e reformas estruturais das áreas mais fragilizadas. O caos que se regista nas urgências do Serviço Nacional de Saúde, sucessivamente desde há vários anos; atualmente, com casos recentes de mortes em salas de espera de urgências, numa altura em que se regista um abrandamento do número de internamentos causados pela pandemia, é sintoma de que as lacunas existentes vêm de trás.
Face a isso, não se regista nenhum tipo de posicionamento concreto assumido pela Igreja Católica e pela maioria dos movimentos católicos ativos. Os mesmos grupos e movimentos que se associam para realizar protestos contra a despenalização da eutanásia e do aborto revelam-se incapazes de se mobilizar quando estamos a ser mortos pelos governos que não ouvem quem deveriam para reformar o Serviço Nacional de Saúde, o sistema judicial ou a educação, como se esses não fossem temas de “proteção da vida”.
A propósito da educação veja-se um facto curioso: há várias escolas nos centros de grandes cidades que não têm praticamente candidatos que se apresentem a concursos. Crianças em idade escolar que passam meses sem professores em cadeiras nucleares. Por que motivo há tão pouca gente a querer abraçar a carreira docente? O que é que isso nos pode dizer acerca das condições de vida e de trabalho oferecidas aos professores?
Contudo, continuamos a ser confundidos com promessas de aumento do salário mínimo, sem que seja dita uma única palavra acerca das dificuldades financeiras em que vivem milhares de portugueses. Como é que pode ter saído da ordem do dia o tema da pobreza quando, olhando à nossa volta só vemos dificuldade atrás de dificuldade?
É com vergonha e timidez que se fala na necessidade de criar riqueza, porque se fica conotado com o capitalismo feroz. Esquecendo-nos por completo que, sem a criação de riqueza, não conseguimos melhorar a vida das pessoas e construir a almejada justiça. A diferença entre a preocupação social e a exploração capitalista é que a última considera a riqueza um fim e a primeira um meio. Importa questionarmos as nossas motivações e finalidades.
De forma transversal, registam-se queixas de falta de tempo livre, horas de trabalho extraordinárias, falta de valorização do mérito e ambientes de trabalho tóxicos levando a um número cada vez maior de casos de esgotamento e doenças do foro psíquico. Como é possível tão grande silêncio por parte dos cristãos chamados por Deus a ser sal da terra e luz do mundo? Porque é que se admira o Papa mas não se faz o que ele diz, ao mesmo tempo que criticamos a hipocrisia religiosa dos tempos antigos? Ou será que estamos à procura do argueiro nos olhos dos nossos irmãos quando temos traves diante dos nossos?
Que fácil é o caminho que leva à dispersão e ao alheamento nos tempos de hoje. Somos sistematicamente distraídos com questões menores e reflexões superficiais, para não falar da facilidade com que nos deixamos engolir pelas solicitações de toda a parte. Não damos tempo à oração e à proximidade com Deus e isso leva-nos à dispersão. Só com paciência e procura conseguimos ouvir a Sua voz e deixar que o Espírito nos guie.
Arriscaria associar a falta de preocupação com a justiça social ao decréscimo de procura de interioridade. “Vigiai para que os vossos corações não se tornem pesados com a devassidão, a embriaguez e as preocupações da vida.” (Lucas 21-34) Falta-nos vigilância e oração e, como consequência, estamos mais desligados uns dos outros porque anestesiados em preocupações e ocupações.
As exigências são muitas e em muitos campos e só com muita perseverança conseguimos não nos perder nelas. Ao mesmo tempo que vemos enormes desgraças que nos assaltam o olhar parecemos anestesiados com os pequenos e grandes sofrimentos e inquietações humanas. É uma postura de defesa e de autopreservação e precisamos delas. Mas não nos demitamos. A nossa escala, por pequena que seja, é necessária. A nossa obra, por insignificante que pareça, é precisa. Comecemos por nos alinhar com Cristo, vigiemos a dureza do nosso coração, procuremos o bem e façamos os mínimos para o construir.
A resposta de São Pedro – “Aonde iríamos, Senhor? Só tu tens palavras de vida eterna.” (João 6-68) – é um legado imenso. Nós temos quem nos dê palavras de vida eterna, fomos e somos continuamente salvos, se nos deixarmos salvar. Talvez, com temeridade, achemos que não precisamos de salvação. Talvez julguemos que não precisamos de ir até Deus porque a vida, aparentemente, nos corre bem, apesar dos tons cinzentos-escuros que vemos mas nos recusamos a observar. Somos peritos em encontrar formas airosas de fugir graças ao salvífico instinto de sobrevivência de que somos dotados. Porém, esquecemos que a salvação nos é oferecida por Deus que, de mil modos, se faz próximo, numa relação pessoal e concreta e não numa abstração de grupo.
Só na oração podemos ouvir a Sua voz e discernir o caminho. Como prova de amor o nosso Deus pede a nossa oração e os nossos braços para fazer atuar a Sua providência, na nossa vida, na dos nossos próximos e no mundo, não o deixemos só.
Sofia Távora é jurista e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.