
A Grande Mesquita de Dongguan, em Xining, na China: os uigures, de maioria muçulmana, são uma das etnias mais perseguidas pelo regime Foto © Hiroki Ogawa, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons
Com a invasão da Ucrânia, foi definitivamente enterrada a tese de que a globalização económica baseada no mercado seria acompanhada de um consenso político generalizado em torno dos direitos humanos e da democracia. As divergências políticas e culturais persistem e há quem as associe a um conflito de civilizações. Essas divergências são agora muito nítidas no que à Rússia e ao Ocidente se refere. Mais ainda o são mais no que à China se refere, apesar de não terem (ainda?) reflexos em conflitos militares. Na verdade, as violações dos direitos humanos na China superam em gravidade o que sucede na Rússia, como é próprio de um regime totalitário em confronto com um regime autoritário. É o que se verifica no que à liberdade religiosa diz respeito e basta evocar, a propósito, o caso mais extremo da repressão dos uigures (já por várias pessoas equiparada a um genocídio), uma repressão que também envolve a violação da liberdade religiosa, sendo a religião islâmica marcante fator identitário desse povo.
É de assinalar, quanto a esta questão, um livro recente, do especialista francês em assuntos chineses Claude Meyer: Le Renouveau Éclatant du Spirituel en Chine – Renaissance des religions, répression du Parti (Bayard, 2021). Nele se afirma, em síntese, o seguinte.
A China continua a ser um país oficialmente ateu, fiel, neste aspeto, como na tendência totalitária de controlo estatal omnipresente, à herança maoísta. Tem conhecido, porém, um avassalador crescimento económico capitalista sem paralelo na história. Esse crescimento tem retirado multidões da pobreza, mas também tem acentuado enormemente as desigualdades, sendo hoje o número de milionários chineses superior aos norte-americanos.
Esse crescimento económico contribui para o predomínio do materialismo (um materialismo prático, que acresce ao materialismo ideológico marxista e maoísta). De acordo com alguns estudos, para cerca de dois terços da população o centro da vida reside na aquisição de bens materiais. Daqui resulta um profundo vazio espiritual e uma profunda crise moral (crise moral que se reflete, além do mais, no alastrar da corrupção). Essa crise conduz ao esvanecer das virtudes tradicionais chinesas e o governo reage a isso, à sua maneira, com medidas como a obrigatoriedade de visitas aos familiares idosos, sob pena de multa…
Neste contexto de vazio espiritual, de descrédito da ideologia comunista e de materialismo prático, o cristianismo tem crescido de forma exponencial. Estima-se que em 2030 a China poderá ser o país com maior número absoluto de cristãos. Esse crescimento dá-se entre os jovens e nos meios urbanos e intelectuais. Dá-se sobretudo entre os cristãos protestantes (por razões que o livro tenta explicar).
Depois da fortíssima repressão da época maoísta, esse crescimento beneficiou da relativa tolerância iniciada com as políticas de Deng Xiaoping. A ideologia oficial não deixou de ser o ateísmo, sendo a religião encarada como fenómeno destinado a ser superado com o progresso económico. E, também por isso, uma maior repressão não seria necessárias.
Com a atual liderança de Xi Jiping, surgiu uma nova fase, não de proibição absoluta, mas de controlo absoluto e omnipresente e de instrumentalização da religião em função dos objetivos políticos governamentais. Para esse controlo absoluto e omnipresente, servem os mais avançados meios tecnológicos (as câmaras de vigilância e o reconhecimento facial), associados ao sistema de “crédito social” (a avaliação do suposto “bom comportamento social” como fator que condiciona o acesso a bens e serviços essenciais).
As limitações da liberdade religiosa na China atingem hoje uma intensidade só superada pelas dos tempos do maoísmo e da Revolução Cultural. Atingem, como sempre, as igrejas e comunidades clandestinas (mais difíceis de controlar), mas também as oficialmente reconhecidas. Traduzem-se em detenções, incentivos à delação, destruição de igrejas, proibição de menores participarem em atividades religiosas, obrigatoriedade de afixação de símbolos e retratos políticos em edifícios religiosos e de entoação de hinos políticos durante as celebrações, etc. O acordo com o Vaticano sobre a nomeação dos bispos não tem contribuído para a melhoria desta situação: pelo contrário, serve às autoridades de pretexto para intensificar as restrições da liberdade religiosa dos católicos.
Objetivo declarado do governo é o da chamada “chinização” das religiões, em especial das de origem não chinesa, como o cristianismo. Com este conceito, tal como é interpretado pelo governo chinês, não deve, porém, confundir-se o conceito de “inculturação” da mensagem cristã, ou seja, a fecundação recíproca entre esta mensagem e as várias culturas locais. Pioneiro dessa inculturação e do diálogo entre o cristianismo e a cultura chinesa por eles altamente valorizada, foram, entre os séculos XVI e XVII, o jesuíta Matteo Ricci e seus seguidores, cuja obra é muito apreciada pelos meios académicos e políticos chineses. Mas não é dessa “inculturação” e desse diálogo recíproco que se trata. A “chinização” traduz-se na adaptação (que em muitos aspetos se torna numa verdadeira distorção) das crenças religiosas aos propósitos de domínio das autoridades políticas e de subordinação das pessoas a esse domínio. Pretende-se até, nesta linha, selecionar e reescrever os textos sagrados.
Em face dessa repressão, os cristãos têm reagido com formas de resistência mais ou menos ativa ou passiva e também com a evangelização através da ação caritativa.
O governo de Xi Jiping tem bem presente o papel que cristãos de várias denominações, na esteira de São João Paulo II (sem necessariamente protagonizarem ações políticas diretas, reivindicando sobretudo aquela liberdade da consciência onde nenhum governo pode entrar), desempenharam na queda do comunismo na Europa. E também não será por acaso que uma boa parte dos chineses defensores dos direitos humanos é movida pela sua fé cristã.
Para Claude Meyer, o autor deste livro, toda esta repressão das atividades religiosas é um sintoma do falhanço das políticas do governo chinês, da ideologia ateia que ainda o inspira e da incapacidade de, com essa ideologia ou com a “chinização”, preencher aquele vazio espiritual gerado pelo predomínio da mentalidade materialista que o crescimento económico tem provocado.
É esta, em síntese, a mensagem deste livro.
Hoje, depois da guerra da Ucrânia, muito se fala numa nova ordem internacional e no papel que nela desempenhará a República Popular da China, uma potência económica cada vez mais presente nos vários continentes, que aspira a ser a primeira no ano do seu centenário, em 2049.
Essa nova ordem internacional não corresponde, claramente, à tese do “fim da história” (que supunha a generalização de um consenso global em torno dos valores da democracia e dos direitos humanos) e parece confirmar a outra tese, a do “conflito de civilizações” (conflito que envolveria diferentes conceções sobre o valor dos direitos da pessoa no seu relacionamento com as autoridades políticas).
Importa, porém, neste contexto, salientar que os direitos humanos têm valor universal (a liberdade religiosa tem o mesmo valor no Ocidente e na China, a vida de um europeu tem o mesmo valor do que a de um africano ou um uigure); que as culturas, a Oriente e a Ocidente, não são estáticas; que elas não têm necessariamente de conflituar entre si (o diálogo entre elas é fecundo e enriquecedor) e que a globalização económica, com os laços de interdependência que cria, não pode desligar-se de outras formas de globalização. É nesta perspetiva que o “renascer religioso na China” pode contribuir (talvez não já amanhã) para uma nova ordem internacional que não signifique o regresso de uma qualquer “guerra fria”, ou de múltiplas “guerras quentes”.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz