
O Rosto Inacabado, editado pelo Secretariado Nacional de Liturgia, faz um percurso em seis capítulos pelo rosto de Cristo na Bíblia.
É com uma citação do teólogo Olivier Clément que Mário Rui de Oliveira conclui o seu livro O Rosto Inacabado – Aproximações ao Rosto de Cristo e do Homem. Escrevia o teólogo ortodoxo, que morreu em 2009, que o rosto de Cristo constitui “o rosto comum” da humanidade: “Quando estamos diante de um ser de bondade, de paz, de bênção, sentimos que isso nos circunda, nos envolve, nos associa à imensidão que brota dele.” Na abertura que Jesus é, “descobrimos o verdadeiro rosto do outro libertado das máscaras, reunificado, segredo de uma pessoa e contemporaneamente lugar de Deus. Todas as raças, todas as culturas, todas as formas de adoração, encontram o seu espaço e o seu significado último nesta abertura. O rosto de Cristo nos ícones, cor de terra empastado de luz, não pertence à raça branca: é o rosto abissal do género humano, e antes de todas as diferenciações e também através de todas elas”.
O Rosto Inacabado, editado esta semana pelo Secretariado Nacional de Liturgia, faz um percurso em seis capítulos pelo rosto de Cristo na Bíblia e pelas “presenças reais” no texto bíblico, no ícone e na eucaristia, antes de falar dos “ignorados”: as crianças, os pequenos, os que sofrem, os que têm fome ou sede, os estrangeiros, os pobres, os doentes ou os presos. A obra reflecte depois, nas suas 120 páginas, sobre a transfiguração do rosto a partir dos protagonistas do episódio da Transfiguração de Jesus: além dele próprio, também Pedro, Tiago, João e Elias. Parte daí para, nos dois capítulos finais, abordar os símbolos iconográficos dessa transfiguração, a transfiguração do universo e a eucaristia como memória transformadora em Cristo.
O 7MARGENS reproduz a seguir a introdução do livro.
O Rosto Inacabado
Num dos contos do livro “Histórias para uma noite de calmaria” o poeta e argumentista da época de ouro do cinema italiano, Tonino Guerra, conta a fábula de uma jovem freira que sofria mais que nenhuma outra criatura humana a renúncia aos prazeres do corpo e que, por diversas noites, foi recolhendo pedaços de papel que alguém fazia passar secretamente por debaixo da porta da sua cela monástica. Eram fragmentos de um papel branquíssimo no qual se podia intuir uma marca ou um desenho de uma parte do rosto. Inicialmente, reconstrói um olho, depois uma madeixa de cabelo, uma orelha, depois a boca, a fronte, o mento.
A freira procurou compor o rosto unindo o puzzle e com um certo terror deu-se conta de padecer cada vez mais o fascínio que exalava daquela imagem ainda inacabada.
Na última noite, quando era já claro que sobre o pedaço de papel iria encontrar o último fragmento que serviria para completar o rosto inacabado do sedutor secreto, acendeu uma vela para queimar aquela imagem de tentação. Mas qual não foi o seu espanto ao verificar que aquela imagem era o rosto de Deus.
Então, uma a uma, engoliu cada um daqueles pedaços de papel como se fossem hóstias consagradas.
Esta maravilhosa história do rosto inacabado do sedutor secreto concentra poeticamente aquela aproximação que desejaríamos propor ao rosto de Deus e ao rosto do Homem.
O que o poeta admiravelmente consegue é concentrar numa história a síntese da revelação cristã que desde os tempos imemoriais do Antigo Testamento fez coincidir “a procura do rosto de Deus” com o filão neotestamentário e joanino do “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9), ou com as melhores reflexões filosóficas acerca do rosto como epifania do “outro” e do “Outrem” (Lévinas).
O rosto do sedutor secreto da narração poética aparece como um rosto inacabado, em construção, um rosto que é enigma e depois mistério, tentação e apelo à conversão, um rosto que é segredo e revelação. Diante do rosto do outro, tão diverso do meu e do qual não posso prescindir sem arriscar o próprio desaparecimento, um mundo de possibilidades se abre.
Não se trata, claro está, dessa coisa que carregamos em cima dos ombros e que tantas vezes é campo de batalha cosmético e cirúrgico em busca de perfeição ilusória e material. O rosto da revelação cristã, o rosto de que fala Lévinas, não é o da maquilhagem e da aparência, mas o da relação e abertura à beleza intrínseca e natural do outro, porque no rosto se revela a verdadeira essência do ser humano. Ele é a epifania do outro, o que nos carateriza e diferencia, abrindo-nos à alteridade e ao divino.

O Deus de Abraão, de Jacob e de Isaac é o Deus amigo dos homens que “falava com Moisés face a face, como um homem fala com o outro” (Ex 33, 11). Na releitura cristã este texto tinha forçosamente de alcançar uma hermenêutica cristológica pois Jesus, não já como amigo, mas como Filho, estava continuamente face a face com o Pai.
Jesus vê o Rosto de Deus e sobre o seu rosto torna visível para nós a glória de Deus (2 Cor 4, 6). A partir desse momento a procura do Rosto de Deus coincide com o encontro com Cristo, na amizade com ele, que nos chama amigos (Jo 15, 15), na sua sequela, que não significa mera imitação, mas orientação de toda a existência no seu radical seguimento.
O rosto de Cristo, imagem e ícone do rosto do outro para nós, no qual se identifica, é sobretudo paixão, no duplo sentido do termo, de profundo amor (eros/agapé/caritas) e de intenso sofrimento (pathos). Ver Jesus corresponde a “olhar para aquele que trespassaram” (Jo 19, 37; Zc 12, 10) e entrar na sequela Christi, que é um viver paradoxal no lugar onde Jesus se encontra, ou seja, na paixão. Neste sentido existe uma circularidade cristológica e passional onde a paixão de Cristo se atualiza na paixão dos homens e na paixão dos homens Cristo sofre de novo a sua paixão.
Os Evangelhos testemunham que Jesus nomeou algumas categorias de pessoas com as quais se identificou e se tornaram, de consequência, ícones do seu Rosto, ou seja, incorporações ou variações do seu semblante. São facetas do seu autorretrato. O evangelizador ou discípulo (Lc 10, 16); as crianças e os pequeninos (Mt 18, 5) e os que sofrem (Mt 25, 31-46) são os ignorados da história nos quais Jesus se revela e apresenta o seu projeto de ética cristã.
A história de Tonino Guerra termina em adoração, em Eucaristia. A religiosa contempla diante de si o corpo e o rosto de Cristo, primeiro como tentação e enigma, e imediatamente depois, como adoração e mistério. No salto da fé, o encontro do rosto do outro abre-nos à contemplação e adoração do Outro.
A Eucaristia é um segredo, um esconderijo, uma teofania velada, uma parusia escondida. Blaise Pascal expressou este conceito como ninguém e de um modo admirável: “quando desejou cumprir a promessa que tinha feito aos apóstolos de permanecer com os homens até ao seu advento nos últimos tempos, escolheu habitar no segredo mais estranho e obscuro de todos: as espécies eucarísticas. É este sacramento que João chama no Apocalipse (2, 17) maná escondido; e creio que Isaías o via sob esta forma quando disse sob a inspiração profética: “Na verdade, tu és um Deus escondido” (Is 45, 15). É ali o último esconderijo onde ele pode estar”.
A Eucaristia, como o segredo mais estranho e obscuro de todos, desdobra ou estende até nós este mistério, na forma instituída pelo próprio Jesus na última Ceia. Ela permite participar sacramentalmente no duplo movimento traçado pelo mistério próprio de Cristo: a encarnação e a divinização. Para usar uma expressão da patrística, “Deus fez-se homem, para que o homem se torne Deus”.
Para concluir, uma palavra sobre o ícone. Juntamente à Eucaristia e à Sagrada Escritura, também a origem do ícone remonta ao próprio Cristo e não “às-mãos-humanas”. Tal como o Evangelho e a Eucaristia, o ícone foi transmitido pela Igreja, desde os tempos de Cristo até aos nossos dias!
A afirmação da origem não humana do ícone assumiu historicamente duas formas: uma forma lendária e outra forma dogmática. Em ambas as versões, além da afirmação que o ícone remonta ao próprio Jesus, o elemento essencial parece ser a afirmação de que a imagem é “acheiropoíete”. O ícone é, também ele, de “origem não humana” e é este caráter que autentifica cada ícone do rosto de Cristo, porque modelo arquétipo, que a Igreja sucessivamente transmitiu e os pintores de ícones recopiaram de geração em geração.
De qualquer dos modos, o ícone, tal como a palavra de Deus, tem um efeito sobre aquele que o recebe. Tal efeito não é outro que a divinização do fiel cristão. O ícone é um “espelho ativo” que transforma à sua semelhança aquele que o contempla. Mas a verdade é que não é tanto o crente que olha ou contempla o ícone, mas, inversamente, é o ícone que olha e contempla o crente. Ou melhor, o ícone envolve-o e encara-o, pois o espaço que ele cria “engloba” o nosso espaço.
A presença real do ícone é, em síntese, uma “presença para os olhos”, pela sua estabilidade na duração, enquanto a Palavra se apresenta como uma “presença para os ouvidos” e a Eucaristia, com a sua finalidade transitória, enquanto alimento destinado a ser digerido e assimilado pelo corpo do crente, num místico movimento de divinização, é uma “presença para o corpo”.
Seduzidos por este rosto secreto, deixemo-nos aproximar e aproximemo-nos do Rosto de Cristo e do Homem.