Se houve alguém que soube colocar as suas qualidades excecionais de comunicador e de mobilizador de vontades, foi o cónego João Seabra.
Muito se tem dito e escrito sobre a sua personalidade cativante, mas a maior justiça que pode ser feita tem a ver com essas características inolvidáveis. Não foi, assim, por acaso que um dos projetos em que colocou maior esperança foi o projeto educativo, que terá uma importância perene e que revelará, por certo, no futuro, a importância dessa sua capacidade de generosa partilha. E ao colocar essa missão (porque de missão se tratou no melhor sentido da palavra) sob a invocação de S. Tomás de Aquino (1225-1274) fê-lo em genuína fidelidade não a qualquer perspetiva escolástica fechada, mas à dimensão profundamente renovadora do Doutor Angélico no seu tempo e na evolução dos tempos.
De facto, como aconteceu com o português Frei João de S. Tomás, O.P. (1589-1644), o que interessou a João Seabra foi a capacidade de ligar fé e razão, e de cuidar da heterogeneidade e da multiplicidade de que a vida se faz. A realidade obrigava a disponibilidade de espírito – de modo a saber articular valores éticos e ideias e a complexidade do real.
Dizia-se do Aquinense que se lhe dissessem que ia a passar um elefante voador, ele ia à janela para certificar-se se assim era. Essa pequena anedota que parecia menorizar o Santo não era, porém, outra coisa senão a demonstração da importância da experiência e da capacidade de ouvir e de ver. E essa foi a sua grande lição pedagógica, a de lançar sementes à terra para ver frutificarem ao longo dos tempos, sem a tentação de quer que os frutos se confundissem com modelos preconcebidos. E assim quem não tenha compreendido essa generosidade criativa, não entendeu a grande qualidade que continuará a dar resultados pela ação de João Seabra – o segredo da multiplicação.
Conheci o meu amigo João Seabra no Liceu Pedro Nunes no princípio dos anos sessenta e esse conhecimento foi-se aprofundando ao longo do tempo. As nossas primeiras conversas, lembro-me como se fosse hoje, foram sobre as atividades da JEC, Juventude Escolar Católica, entre os apoios sociais, o testemunho e a renovação do Concílio Vaticano II a que então se assistia. Havia sempre mil ideias e iniciativas. Era necessário compreender o novo tempo e os novos desafios da justiça e da paz.
João Seabra tinha 14 anos nessa altura, já com a abertura e a jovialidade que o tempo foi continuando a revelar. A transcendência era um apelo exigente e constante, que já marcava a sua vida e as suas preocupações. E quando líamos Jacques Maritain ou os romances de François Mauriac era a riqueza inesgotável da humanidade que nos entusiasmava. Como trilhar caminhos novos, com fidelidade aos valores permanentes? Estava ainda longe das escolhas eclesiais que oportunamente faria, mas elas já se anunciavam e sobretudo tinha já o gosto da reflexão, da organização e do trabalho da solidariedade e da entreajuda.
O tema das bem-aventuranças era fundamental nas suas prioridades e preocupações. Nessa altura, o Concílio era uma grande esperança e o exemplo do Papa S. João XXIII motivo de especial admiração! A minha lembrança desse tempo tem a ver sobretudo com o entusiasmo e com um grande sentido de humor de João Seabra. Ao longo da vida, fomo-nos encontrando, entre amigos comuns, em muitas conversas, na invocação de seu pai e de seu tio Afonso Botelho, fundadores do Centro Nacional de Cultura, em convites para partilhar reflexões, como pároco da minha freguesia de então.
O estado de espírito continuou a ser o mesmo que encontrei quando nos conhecemos. Há dias, em Roma, na Biblioteca Valliceliana, fundada pelo português Aquiles Estácio, onde está bem presente a memória de S. Filipe Neri, lembrei a proximidade entre o fundador dos Oratorianos e João Seabra. Ambos cultivavam um método pastoral baseado na casuística, no culto do paradoxo, na leitura, numa lógica aberta e persuasiva, feita de conclusões seriamente fundamentadas, mas propositadamente inesperadas, que obrigavam a refletir, a pensar, a ser e a agir.
Foi um leitor, desde muito jovem, de Chesterton e entusiasmava-o o non-sense que se poderia tornar um modo de demonstrar os limites e o erro das posições fechadas e definitivas. Também a aproximação de Luigi Giussiani e de “Comunhão e Libertação” teve a ver com essa sede inesgotável de atenção e de cuidado relativamente à compreensão dos outros e a necessidade de uma aprendizagem rigorosa, mas baseada num humanismo aberto e inteiro.
A educação dos jovens, a preparação para o dia a dia, a ligação entre cultura e ciência, a fé e a razão entusiasmavam-no. Por isso, as rotinas e as repetições nunca o convenciam. A compreensão do mistério do tempo e da história esteve igualmente sempre presente no seu múnus. Tinha uma grande paixão pelo conhecimento histórico e pela análise crítica dos acontecimentos ligados à vida da Igreja, em especial em momentos críticos como o pombalismo e a I República. Era alguém que amava intensamente a vida, as suas surpresas e incertezas! Foi a busca da Verdade e da Vida que sempre importou!
Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.