
Imagem do filme de Filipe Araújo, O Casarão, sobre o seminário dominicano de Aldeia Nova (Ourém). Foto © Direitos Reservados
Parece um túmulo grande, ouve-se. A câmara aproxima-se, lê-se a placa com o nome da localidade – Aldeia Nova –, um drone mostra a vista aérea, meia dúzia de casas, depois um corredor longo, sapatos antigos abandonados e sujos, uma imagem de Jesus…
A aproximação é lenta e misteriosa, como lenta e misteriosa foi a aproximação do realizador, Filipe Araújo, a um lugar que, descobrira ele, falava afinal, também, da presença do pai. É como que desenterrar um passado – um tesouro? – que não se conhece senão por fragmentos: diários, cartas, memórias esparsas, detalhes…

Com tudo isso se irá fazendo, ao longo dos 72 minutos do documentário, essa aproximação espacial à história de um seminário – o da Aldeia Nova, concelho de Ourém – da Ordem Dominicana. Oásis de liberdade no tempo da ditadura. Onde se falava de autores proibidos no resto do país, onde chegavam publicações heterodoxas, onde se respirava o debate de ideias, onde se falava até – pasme-se ou não? – de sexualidade – tema, aliás, que provocará uma pequena nota de humor através das imagens.
Um paradoxo em plena ditadura, nota o realizador, Filipe Araújo, que permite que “num lugar carregado de isolamento [aconteça] a ‘descoberta da liberdade’ por parte de um grupo de pré-adolescentes a preparar-se para algo que nunca chegaria a ser”.

O realizador aproximou-se da história – e da casa – há meia dúzia de anos. Antes, em 2008, morrera-lhe o pai, o investigador universitário Horácio Araújo – que, entre outros trabalhos, também fez uma descoberta: a do manuscrito de Asia Extrema, do jesuíta António de Gouveia, crónica de missão na China, que cruza literatura espiritual e literatura de viagens e integra os relatos das viagens dos também jesuítas Bento de Góis em busca do Preste João, e António de Almeida, o primeiro jesuíta português a entrar na China, companheiro de Matteo Ricci.
No filme, o olhar aproximativo faz-se também de forma temporal. Um vaivém entre presente e passado. O pai buscava por acaso inspiração para um tema de tese quando tropeçou no manuscrito de António de Gouveia. O filho fazia pesquisa para completar o inventário bibliográfico do pai quando deu com um blogue de antigos colegas e seminaristas. Cartas, diários, memórias, fotos…

Tudo isso convocou de novo a infância que ficara arrumada algures: “Todas as noites, para me adormecer, o meu pai tinha por hábito ler-me ou contar-me uma história. Com o correr dos anos, das ficções improvisadas foi passando às narrativas alheias, ainda que, não raras vezes, quando o cansaço acusava, preferisse fechar a luz e puxar antes pelas suas memórias, que, dependendo das minhas reações e do nosso grau de sonolência, aproveitava ou não para efabular, misturando realidade com ficção.”
Assim, a Aldeia Nova e o Casarão entravam pela porta da infância mas só se abririam já na idade adulta. Tal como outras referências: “Assim vi ser-me introduzida a obra de Sophia de Mello Breyner, me solidarizei com um eremita rodeado de animais falantes e aterrei nesse espaço intrigante de Aldeia Nova: à primeira vista, uma espécie de colégio interno controlado por homens de branco no isolamento de uma aldeia sem eletricidade nem água corrente.”

Memórias e aproximações, espaço e tempo conjugam-se nos textos que se decifram, nas fotografias que precisam de lupa, no fogo que arde e se vê, na tímida dança, no futebol jogado e depois transfigurado em formigueiro e, finalmente, em rasto de avião. Um percurso intimista, que começa com o jovem Horácio ido para o seminário com 10 anos, de uma aldeia do Minho (o único dos cinco irmãos a seguir estudos). Passará depois pela vida de um professor universitário, de personalidades reconhecidas como frei Bento Domingues – que também andou no Casarão e seguiu a vida de frade dominicano –, o escritor João de Melo (um excerto do seu Gente Feliz com Lágrimas integra o filme) ou outros homens, que hoje têm filhos como Filipe, ou netos, ou vidas que andaram em muitas andanças e se encontram anualmente e desse modo fecham um ciclo, quando o filme retrata um dos encontros anuais.
(A propósito do percurso intimista, é curiosa a coincidência que faz com que A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, e agora O Casarão, coincidam em sala. Num país pouco habituado a ter documentários em salas de cinema, ainda por cima com a raiz comum da memória familiar, é um pormenor assinalável. Interessante ainda o facto de O Casarão ter sido o filme mais visto entre quinta-feira e domingo passado, no cinema onde esteve em exibição, e ter tido bons resultados também em Leiria.)

A aproximação faz-se, ainda, pela ligação à vida do que sobra da aldeia e de António, o caseiro, que vive junto do casarão e é guardador de memórias. Dada altura, as tralhas que subsistem são colocadas numa carrinha, para esvaziar a casa, entretanto vendida. Símbolo da desertificação de uma aldeia e do espaço rural, nota o realizador, símbolo do espaço público que se esvaziou do religioso.

Chuva de Inverno no início, que se abre à Primavera e às cerejas (uma taça delas em cima da mesa do caseiro), trabalhos agrícolas no Verão, outonais folhas caídas uma última balada chuvosa. Queremos melhor do que esta simulação de um tempo que vai e não volta, mesmo quando rodam as estações?
No final, há uma carta de despedida de um dos jovens rapazes, as tralhas que se colocam na carrinha, a casa que se esvazia, as portas que se fecham sobre um tempo e sobre muitas vidas, o regresso a França de um emigrante que viera apenas de férias.
O Casarão permite viajar. E respirar.
O Casarão, de Filipe Araújo
Documentário. Dez. 2020, cor, 72′
Produção. Blablabla Media, RTP, Portugal
Com António Oliveira, Dinis Dias e Tonito Oliveira. A partir de textos dos ex-seminaristas Horácio Araújo, Mário Rocha Creoulo, Fernando Vaz, José Ribeiro, Eduardo Bento, Nelson Veiga e da obra literária de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas.
Com o apoio do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual, Ministério da Cultura e da Sociedade Portuguesa de Autores.
Cinema City Alvalade (Lisboa)
Segunda a sexta, 19h35; sábado e domingo, 13h30 e 19h35
(Telefone: 218413040)
Cinema City Leiria
Segunda a sexta, 19h45; sábado e domingo, 13h45 e 19h45
(Telefone: 244845071)