
Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação.
O Simão ainda tem o tamanho de menino que consegue caminhar por baixo da mesa de jantar. Inclina um bocadinho a cabeça, risonho, e passa de um lado ao outro com as suas aventuras. Tem os olhos que são todo um convite para o mundo. A vida é atraída por aqueles olhos e vai por ali adentro em torrente, com o entusiasmo de um ribeiro. Acende-se naquele rosto com uma exuberância que parece ouvir-se, se estivermos atentos. E é preciso estarmos atentos, porque a boca dele é calada e os gestos são gentis.
Há pouco tempo, veio dar-me um abraço quando a celebração da comunidade estava quase a começar. “Posso ir contigo?” E num pequeno diálogo percebemos, eu e os pais, que ele queria acompanhar-me durante a celebração. “Claro que sim, vens comigo e podes ir ter com os pais quando quiseres.” A mãe a dizer coisas de mãe, “ó Simão, olha que não te podes portar mal”, “ó Rui, olha que ele lá no altar depois começa-te a fazer perguntas e não te deixa celebrar”, mas o que ali ocupava o espaço inteiro era aquela cabecita levantada para mim com dois olhos que encadeavam. A comunidade começou a cantar, era hora do louvor desse Domingo. Entrámos eu e o Simão, que caminhava ao meu lado. A comunidade sorria surpreendida, feliz e vaidosa, à medida que o iam vendo. Ele, suavíssimo. Concentrado. O cosmos inteiro parado por causa da solenidade que ele colocava em cada passo, em cada esgar para ver o que eu fazia e fazer também.
Aproximei-me da Mesa da nossa Eucaristia. É uma Mesa grande e maciça, no centro. Atrás dela, comigo, o Simão não era visto pelas pessoas que estavam à frente, apenas pelas que estavam dos lados. Inclinei-me para beijar a Mesa. Ele não. Deu um passo em frente e beijou aquela Mesa, como se fosse uma pessoa, a face de um amigo, um rosto. Fiquei profundamente comovido.
Durante as orações, quando eu abria os braços, ele abria-os também. Em nenhum momento ele estava a brincar, não havia nada nele que aparentasse mímica. Ele abria os braços por perceber que assim era o certo, e enquanto eu rezava em voz alta ele fechava os olhos muito compenetrado para me acompanhar. Ele era a alma que eu tantas vezes precisava, ele era a autenticidade e a entrega daquilo de que eu estava a ser expressão. As pessoas continuavam em profundo sorriso, que não desarmava. Porque havia uma candura a tomar conta de nós, porque nesse dia uma unção nos visitava naquele nico de gente. Os que estavam de frente para a Mesa, contaram depois, não o viam a ele mas viam apenas as mãozitas a aparecerem quando ele me acompanhava em oração levantando-as.
Quando nos sentámos para a liturgia da Palavra, ele permaneceu ao meu lado. Começa a primeira leitura, e ele olhava ao redor. Depois do salmo, durante a segunda leitura, os pés começaram a pedalar no ar, porque aqueles bancos não são para quem é tão pequeno. As leituras estavam claramente a demorar demasiado e ele sentia que devia fazer ali qualquer coisa. Tocou-me de mansinho no braço, eu inclinei-me para o lado e apontei-lhe o ouvido. Ele segredou: “Posso rezar?” “Rezar como, Simão?” “Baixinho, só eu. É que não estou a ouvir…” “Podes, Simão. Reza à vontade por nós todos, está bem?” Iluminou-se! Um sorriso de quem recebe missão secreta e sabe exactamente como a vai executar. A segunda leitura continuava. Os pés também continuaram o pêndulo calmo. Mas ele fechou os olhos, inclinou-se um pouco para diante como se precisasse de um espaço côncavo, um corpo capaz de eco. Pousou as mãos e apareceu aquela oração-menina que tinha nascido dentro dele e estava com tanta vontade de sair. Muito baixinho, um rumor que apenas eu ouvia por estar sentado ao lado: “Pai nosso, só sei isto… Pai nosso, só sei isto… Pai nosso, só sei isto…”
Quando a comunidade se levantou em Alelu’Ya para aclamar o Evangelho, eu tinha sido transportado para outro lugar, uma terra santa que o Simão tinha inventado com aquela oração-menina que lhe apareceu. Quando eu for crescido vou querer rezar assim. Ele levantou-se também, muito certo do que tinha acabado de fazer, olhámos um para o outro e ele piscou-me o olho, com aquele amadorismo de quem ainda precisa de movimentar quase o rosto inteiro para isso. Era como se dissesse “está feito!” ou o ámen que faltava.
Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.