“Vi respirar com familiaridade uma vida
totalmente penetrada por humildade e lirismo;
e tive ao alcance da mão o jogo das mais altas e tranquilas
faculdades espirituais. São estados que não parecem compatíveis
com a grande civilização […]”
MAURICE BARRÈS
in Greco ou o Segredo de Toledo
(trad. Aníbal Fernandes)
Não é possível sair das ruas de Toledo. Se um qualquer sortilégio deveras nos atrai e nos conduz ao seu labirinto, estamos perdidos. Dizem-me que as grossas correntes penduradas por um arquitecto na abside exterior de San Juan de los Reyes são cadeias de quem foi libertado do cativeiro em terras mouriscas. Não acredito. Têm, antes, um ar de aviso. Serão decerto um dos vários avisos (sibilinos) que a cidade oferece, com ironia, a quem se prepara para entrar nela. Se persistirmos na ousadia e por aí entrarmos, avançando, atraídos pelo quase silencioso canto de um convite, não mais conseguiremos sair – mesmo que o nosso corpo parta.
Nada do que escrevo serve, é claro, para aqueles cuja deambulação recusa as vias do conhecimento íntimo, procurado ou somente encontrado, aqueles cujo olhar recusa a visão ou, pior, a demorada presença contemplativa, cuja medida de tempo é irrelevante, se dominada pela atenção. O que escrevo não serve para os que são ou procuram ser turistas. Não conseguem ou não querem ser viajantes. Recusam ou desconhecem o verbo “contemplar”. Alheados, saem de Toledo – ou de qualquer outro lugar (que de imediato transformam num cenário desvitalizado, plástico, destinado a servir de fundo à sua própria imagem) – sem deveras lá terem entrado.
Haverá, por isso, quem se satisfaça com a subida ao castelo de San Servando, daí abarque as contradições de Toledo, como se elas não existissem ou fossem somente um par de páginas de ficção. É, decerto, mais seguro. Livra-se de estranhezas, de inquietações, de espantos. Livra-se, sobretudo, do labirinto de paradoxos que enredou Santa Beatriz da Silva, Domenikos Theotokopoulos ou Rainer Maria Rilke, agarrando-os e transfigurando-os.

El Greco, Vista e Mapa de Toledo, reproduzido a partir do Google Art Project
Por ter consciência do labirinto que incorporou ao chegar à cidade, o pintor grego teve necessidade de traçar com minúcia e de apresentar o mapa de Toledo. Surge nas mãos de um rapaz, ao lado de uma das mais estranhas vistas que nos deixou da urbe. As obras de Domenikos estão, talvez por isso, dominadas por um intenso desejo de fuga. Nesse extenso quadro (hoje exposto numa casa que dizem ter sido a sua, sem nunca ali ter habitado), a planta urbana surge como uma mancha branca, quase abstracta, na tentativa, em grande parte frustrada, de desvelar as ruas de uma cidade quase invisível (que bem poderia ter merecido algumas páginas no livro de Italo Calvino). Essa mancha domina, quanto a mim, o conjunto. Manifesta uma ansiedade disfarçada, que se desvela do outro lado da pintura, quando nos confrontamos com a contorcida, perturbada e perturbadora alegoria do rio Tejo, pintada com os mesmos tons de terra e de ocre que dominam as fachadas toledanas, a qual evoca o aflito Laocoonte, a tentar livrar-se das serpentes enviadas, como castigo, por Apolo. É uma pintura que dá expressão à vontade de fugir, de sair. Basta olharmos para o edifício central, colocado sobre nuvens, e sobretudo para a discreta assunção, colocada sobre o eixo aparente da cidade. Levada pelos anjos, a Senhora é, antes, uma alma que se escapa de um lugar onde o segredo, o enigma e (talvez) o mistério nos prendem, como os alfinetes da pequeníssima e surpreendente edícula da Calle de los Alfileritos, aí colocados pelas raparigas em idade de casar, pedindo a intervenção de uma Virgem Dolorosa.
Grego como era, Theotokopoulos talvez tenha feito jus ao apelido que tinha, tentando encontrar nele uma via de fuga. Decerto saberia ser impossível livrar-se dessa Circe ibérica. Mas foi tentando, apesar da consciência do insucesso. Ainda assim, Domenikos terá mastigado alguma planta hermética, ao ponto de nunca se transformar em suíno (como os companheiros do Odisseu). Mas nunca chegou a ter forças que o levassem à partida e ao regresso à sua terra. Prova-se, assim, a força do sortilégio toledano. É certo: poderia transportar-se Tejo abaixo, até à sua foz, em Lisboa, daí partindo por mar até ao Mediterrâneo. Sabia, no entanto, que nunca mais teria paz noutro lugar. Essa ansiedade – esse desejo insatisfeito de fuga, impossível de se concretizar – é recorrente nas pinturas do Grego. Por isso, nos inquietam tanto as nuvens carregadas com que sempre pintou Toledo e, mais do que tudo, a expansão visual desse Tejo-Laocoonte, ansioso e angustiado, que espelha o artista na sua metamorfose. É certo que o pintor transpôs para a tela uma estátua romana existente no Vaticano. Não obstante, transfigurou-a. E não somente uma vez. Acentuou o drama, sabendo bem demais que era o seu drama.
Dir-se-á que o desejo de fugir ao mundo é recorrente nesse tempo, em que o esboroar das ilusões (libertárias e libertinas) do Renascimento, com consequências graves na erosão do humanismo, causou uma dolorosa consciência de crise por todos os cantos da Europa. Daí nasceram formas convulsas e angustiadas, ilógicas, perturbadas e perturbadoras. Essa passou a ser a linguagem dos verdadeiros poetas, dos escultores, dos pintores e de muitos arquitectos. Ar do tempo, portanto. Não me parece… Se assim fosse, creio, Domenikos não teria posto tantas vezes a já sua Toledo como fundo das cenas que pintava. Se fosse apenas um lugar comum, a pintura de El Greco não seria tão incomodamente distinta de todas aquelas que se fizeram nas suas décadas de vida, movidas por idêntica perturbação.
A cidade transcende sempre a condição de cenário – e algumas vezes tomou mesmo o protagonismo. Nota-se, de facto, a consciência de um sortilégio nas vistas que pintou. Theotokopoulos fora cativado e aprisionado por ele. Os olhos vidrados das suas personagens, dirigidos ao firmamento, exprimem lágrimas que as legendas das suas personagens contam. Num outro nível semântico, evidenciam contudo o retrato mais íntimo de quem as pintou e a inquietante consciência de que a saída de Toledo será sempre pela via da assunção ou do passamento. Convenhamos: quem assim pensa, reconhece uma derrota mundana. Talvez se sinta preso pelas correntes de San Juan de los Reyes. Talvez se sinta vencido pela inacessibilidade do Tejo, quase abissal no fundo da ravina. Talvez sinta que Toledo é uma Circe da qual é impossível fugir. Talvez resista à mudança, sabendo que ela é inevitável. Talvez se sinta vencido pelo labirinto, cuja saída não encontra – ou cuja saída não quer, deveras, encontrar, ao estar “preso por vontade”, como diria o seu contemporâneo luso, Camões.
Não sei se Freud alguma vez esteve em Toledo. Ainda assim, parece-me que não lhe negaria o atributo que cunhou para certas realidades que nos provocam uma inquietante estranheza (unheimlich). Não sei se os toledanos sentem assim a sua cidade, habituados que estão a fazer parte desse organismo vivo, em que a arquitectura e o urbanismo exprimem não só a geografia física, adaptando-se a ela, mas sobretudo as quase infinitas e complexas circunvoluções que a transformaram num magneto, capaz de cativar quem dele não foge, quem dele se aproxima incauto pelo menos uma vez na vida. Trata-se, efectivamente, de uma inquebrável prisão. Mesmo que sejamos abençoados com o antídoto da cautela (como Ulisses, antes de encontrar Circe), nunca mais de lá sairemos, ainda que dela nos ausentemos longo tempo.
Nicolau de Cusa – amigo e correspondente de Juan de Segóvia (arcebispo de Cesareia, humanista que havia sido professor em Salamanca e, antes, cónego da Catedral Primaz de Toledo) – ao escrever sobre a “douta ignorância”, avisou-nos de que “as coisas raras, ainda que monstruosas, costumam mover-nos”. No mesmo parágrafo, o cardeal alemão (que algo deveria perceber de prisões, pois quis ser sepultado em San Pietro in Vincoli, a sua igreja titular em Roma, onde se guardam e veneram as cadeias de São Pedro) evocou uma “certa sensação desagradável” que “precede, à boca do estômago, o apetite”, quando quis indicar-nos o caminho que vai do “admirar-se, causa do filosofar” (anterior ao “desejo de saber”) ao “entender” intelectual, que consiste no “estudo da verdade”. Toledo, convenhamos, não é uma cidade bela. É, sobretudo, uma cidade verdadeira, em que a ironia e os paradoxos, encontrados a cada passo, nos desviam das ilusões da mundanidade vaidosa e auto-satisfeita, ao apresentar-nos uma sucessão de espelhos simbólicos onde nos confrontamos com o incómodo das nossas contradições, quantas vezes insanáveis.
Grande parte dos edifícios religiosos quase pede desculpa por existir. O esplendor mudéjar, multiplicado e multiplicado, é na realidade uma expressão artística que não esconde a pobreza dos materiais. A catedral – cuja magnificência nos leva a repetir mentalmente as palavras de Pedro, Tiago e João, quando viram Jesus transfigurado (“que bom é estarmos aqui… façamos três tendas…”) – não precisou de rasurar a expressão de cada um dos seus séculos de vida para ir introduzindo a novidade dos tempos por que passou. Consegue ser imponente sem nos diminuir e, quando leva a epifania artística e espiritual ao paroxismo (como no barroquíssimo Transparente, criado por um quase esquecido Narciso Tomé), não deixa de introduzir uma nota de finitude e de crítica à vaidade do mundo, vislumbrável nas colunas que parecem derreter-se, como se fossem de cera. As jóias mais sedutoras de Toledo não são de ouro nem de prata, mas antes de aço, latão e bronze… A “Plaza Mayor”, assim dita, como em qualquer cidade ou vila espanhola, é na realidade discretíssima e quase inexpressiva. Não daríamos por ela, não fosse um teatro que lá construíram. Parece ensinar-nos, muito cristãmente, que a verdadeira grandeza no palco do mundo está na pequenez…
É fácil compreender, assim, que Domenikos Theotokopoulos se tenha sentido incomodado nessa urbe e, calando verbalmente o incómodo, só tenha conseguido exprimi-lo nas suas pinturas. Uma terra assim obriga-nos à mudança, quiçá à transfiguração. A não ser que sejamos, rasteiramente, turistas… não nos safamos. Somos espicaçados pelo enigma, quiçá pelo mistério, de tantas e tantas ruas enleadas e, das duas uma, ou fugimos ou nos rendemos à atracção magnética, abraçando o processo (doloroso) de desinstalação e transformação.
Ao caminharmos pelas ruas de Toledo, ao entrarmos nalguns dos seus edifícios, há não obstante um outro confronto que nos alivia a tensão. Sucedem-se, com a maior discrição, sorrisos e sorrisos seculares. São incontáveis, garanto-vos. Aqueles rostos esculpidos e pintados fitam-nos com serena ironia e, por vezes, com uma desconcertante beatitude. Oferecem-nos um vislumbre de paz, da paz que resiste aos maiores embates. Talvez nos digam que estar no mundo só é possível se ao mundo não pertencermos.
(para o José Félix Duque, cativado por Toledo)