
Da esquerda para a direita: o presidente da CEP, José Ornelas, o vice-presidente, Virgílio Antunes, e o secretário, padre Manuel Barbosa, antes da conferência de imprensa desta sexta-feira. Foto © António Marujo/7Margens
Os bispos católicos tinham pela frente uma tarefa que não era fácil: estar à altura, nas medidas que viessem anunciar, da coragem de ter criado uma Comissão Independente para estudar os abusos sexuais de crianças nos espaços da Igreja e do impacto público que o relatório e as recomendações dessa Comissão deixaram em suspenso.
Como é evidente, as expectativas eram elevadas e provavelmente nem todas coincidentes. Mas era necessário que não ficassem dúvidas de que a Igreja Católica, através dos seus mais altos responsáveis, coloca as vítimas no centro dos seus cuidados; que assume responsabilidades incondicionais sobre a violência e a destruição por ela própria infligida, em evidente contradição com a mensagem que prega e deveria testemunhar; e que adota medidas claras e consistentes para restaurar a confiança perdida.
Pode dizer-se que a meia dúzia de medidas anunciadas são positivas, em si mesmas. Desde logo, a disposição para assegurar o apoio espiritual, psicológico e/ou psiquiátrico às vítimas de violência e abuso sexual que o desejarem. E devemos também registar que o comunicado traduz o mínimo denominador comum, entre os que querem avançar (com o presidente da CEP, José Ornelas, à cabeça), e os que consideram que o trabalho da CI já bastou para lhes dar dores de cabeça.
A criação de uma comissão independente para continuar a receber denúncias e a escutar novos casos de vitimização e abuso foi um compromisso assumido pelo presidente da CEP. Importa que a designação que lhe foi dada (“grupo específico”) e a articulação com a Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores não coloquem em causa as suas funções de garante da escuta independente das vítimas e de acompanhamento da concretização dos compromissos assumidos pelos bispos.
Na conferência de imprensa alguém perguntou ao bispo José Ornelas se o que foi agora anunciado poderia ser visto como uma “mão cheia de nada”, ao que ele respondeu que, pelo contrário, se tratava de uma “mão cheia de compromissos”. Esperamos que esses venham a dar resultados. Mas nada, nem o comunicado nem tais compromissos, contempla a vontade de enfrentar com seriedade e determinação a razão principal dos abusos: o clericalismo e o que ele significa de poder sem controlo, de impunidade sem limites.
A verdade é que, quer entre jornalistas quer entre vários comentadores, a sensação que ficou, depois de terminado este encontro, foi o de um certo vazio. De alguns conteúdos importantes, de tom e atitude. Faltou compaixão e assertividade e, perante a tragédia do que está em causa, esperavam-se ambas as coisas. E se na véspera o bispo Américo Aguiar dizia que a “tolerância zero e transparência total” teriam de ser efetivas a partir das resoluções desta assembleia, ficamos, mais uma vez, com a sensação de que essas são apenas expressões de momento, sem adesão à realidade.
Afinal não há nada de sistémico?

A presidência da CEP com jornalistas em Novembro passado. Foto © Clara Raimundo/7Margens.
A questão da lista de mais de uma centena de alegados abusadores acabou, de certa forma, esvaziada. Como é óbvio, seria inaceitável acusar quem quer que fosse sem factos e provas. E é mais do que compreensível o esforço que fez o presidente da Conferência Episcopal a explicar que não basta ter um nome sobre a mesa, para desencadear uma ação. Mas o bispo pode acionar a figura da suspensão de funções nos casos em que haja risco de vitimização, enquanto se reúne informação que permita avaliar se há ou não motivos para um processo. A mensagem que importa assegurar é que as potenciais vítimas não corram riscos; e que se atuará de imediato, mal haja comunicação de uma denúncia.
Por outro lado, ao decompor a lista geral distribuindo-a pelas dioceses e remetendo para o bispo de cada diocese a apreciação dos respetivos casos, estamos a perder a perspetiva de conjunto, ignorando que tipo de situações existem, onde é que se concentram e o que podem significar. Por outras palavras: não estamos aqui perante um problema meramente administrativo ou canónico, mas de lógica de funcionamento da Igreja, em termos hierárquicos, que surge como mero agregado de dioceses, sem uma estratégia comum.
Um facto notório no texto final foi a ausência da questão da cultura sistémica de encobrimento e de silêncio. Já se viu que é conceito que não faz parte do vocabulário dos bispos portugueses. Nem uma vez ele surge no comunicado e, quando um jornalista o colocou, não encontrou resposta.
Ora, se como diz, e bem, o comunicado que saiu da assembleia episcopal, quem comete abusos “tem de assumir as consequências dos seus atos e as responsabilidades civis, criminais e morais daí decorrentes”, não deveria acontecer o mesmo com quem encobre, esconde e varre para debaixo do tapete?
Os bispos, que manifestam justamente alto apreço pelo trabalho desenvolvido pela Comissão Independente, não se pronunciam, uma vez que seja, pelo que se diz nesse relatório sobre o comportamento de pelo menos alguns de entre eles. E fogem quanto podem do que lá se diz sobre a natureza sistémica da cultura dos abusos.
Por outras palavras: os bispos são contundentes na afirmação da “tolerância zero” relativamente aos abusadores de crianças e outras pessoas vulneráveis (ainda que não expliquem o que tal quer dizer em concreto). Mas são completamente omissos quanto aos comportamentos de ocultação e encobrimento desses abusos. Acaso a tolerância zero não tem de se aplicar também a estes?
Não basta, por conseguinte, que os bispos façam, em Igreja, um ato de pedido de perdão ou deixem registado um memorial às vítimas da própria Igreja (e não apenas dos perpetradores de abusos). Como faz notar o Papa Francisco, na intenção de oração para este mês, não basta pedir perdão.
Dizia o presidente da CEP, já na parte final da conferência de imprensa, “não ter dúvida de que é preciso mudar uma cultura [subjacente aos abusos] na Igreja e na sociedade”. Mas que é senão manifestação dessa cultura o poder clerical(ista) que não se põe em questão, mesmo quando é visível para toda a gente que é também uma certa forma de entender e exercer esse poder que produz a cultura dos abusos – de crianças, de pessoas vulneráveis, especialmente mulheres?
Em certa medida, os bispos deram dois passos em frente ao criarem uma Comissão competente e independente para estudar os abusos. Mas se não deram, agora, um passo atrás, pelo menos não terão conseguido colocar a Igreja, perante si mesma e perante a sociedade, num caminho que a credibilize naquilo que ela já faz em vários setores: ser uma Igreja de proximidade, de serviço aos mais descartados, um sinal de esperança na vida de muita gente.
Ainda está a tempo. Mas não por muito mais tempo.