Este livro póstumo do padre católico José Maria Mardones, investigador do Instituto de Filosofia de Madrid e doutor em Sociologia e Teologia, foi concluído dois dias antes da sua morte e é considerado, por muitos, o seu testamento espiritual. Meses antes, em correspondência com um dos seus amigos, o teólogo tinha manifestado o desejo de “escrever acerca das imagens de Deus: matar os nossos falsos deuses. Uma tentativa de apresentar sete imagens perversas acerca de Deus e que têm de ser substituídas por outras positivas”.
Segundo as palavras de Mardones, o livro nasce de uma necessidade de dar resposta ao que ele considerava ser uma distorção da verdadeira imagem do Deus cristão. Através de uma perspetiva pastoral, o autor confrontou-se com a triste realidade das muitas falsas imagens acerca de Deus que tantas pessoas carregam nas suas vidas. Para muitos, Deus é ainda um enorme peso gerado por um acumular de medos, terrores, cargas morais, repressões, que não se atrevem a lançar fora das suas vidas. Era, pois, um imperativo libertar as pessoas desse “Deus” opressor e ajudá-las a descobrir que essas “imagens de Deus”, muitas delas construídas ao longo de séculos mediante leituras erradas das escrituras, ensinos e práticas religiosas, não são as do Deus de Jesus, mas sim a sua negação.
Para Mardones, é necessário desejarmos libertar-nos dessas imagens negativas de Deus e de matarmos esses nossos deuses, a fim de podermos amadurecer na nossa fé e relação com Deus, conforme é da Sua vontade. Para tal, propõe-se, ao longo de sete capítulos, apresentar sete imagens perversas acerca de Deus, as quais devem ser substituídas por outras tantas positivas através de um processo gradual que nos levará da imagem de um Deus terrível para o Deus terno e misericordioso, tal como o encontramos na plenitude da revelação em Jesus Cristo.
Do Deus intervencionista ao Deus intencional. Segundo Mardones, a imagem de um Deus intervencionista que tudo determina e controla, que nada deixa escapar ao Seu controlo ou ação e que predestina, segundo algumas correntes de pensamento teológico, alguns para a salvação e outros para a perdição, é nefasta. O evangelho não apresenta essa imagem de Deus e necessitamos urgentemente de encontrar outro modo de entender a Sua presença no mundo. Jesus nega que eventos trágicos ocorridos, malformações ou deficiências de nascimento sejam consequências de qualquer castigo ou ação divina. Deus é certamente o criador e sustentador de todas as coisas, é o fundamento, a rocha sobre a qual se sustem todo o universo. Apesar de tudo isso, Ele permite que tudo se desenvolva segundo as leis da natureza previamente estabelecidas, deixando-nos igualmente tudo nas nossas mãos.
Do Deus dos sacrifícios ao Deus da vida. Outra imagem negativa que temos de derrubar é a de um Deus que exige sacrifícios e expiações. Esse Deus é violento, vingativo, com sede de sangue e sofrimento. Deus, pelo contrário, é o Deus da vida, da paz, da alegria e da festa, tantas vezes espelhado nos discursos e parábolas de Jesus.
Do Deus da imposição ao Deus da liberdade. Nas relações que temos com Deus, temos de passar da dependência à liberdade. Mardones afirma que ainda existem muitos cristãos em menoridade decorrente da imagem que têm de um deus impositivo. Deus é um Deus de liberdade, que deseja a nossa liberdade e que nada nos impõe. Mas essa liberdade impõe certamente responsabilidade: irresponsáveis são os seres sem liberdade.
Do Deus externo ao Deus que nos permeia. Colocar Deus fora de nós próprios é uma imagem muito habitual em muitos crentes. Deus vive dentro de nós e permeia toda a realidade, porque nele vivemos, movemos e existimos. Também o próprio Espírito Santo vive dentro de cada um de nós, nos acompanha e assiste em cada momento das nossas vidas.
Do Deus individualista ao Deus solidário. Contrariamente a esse individualismo tão em voga nas nossas sociedades ocidentais, o qual nos impõe por vezes imagens de um Deus estritamente pessoal, Mardones contrapõe um Deus solidário, de partilha e de cuidado. A Encarnação do próprio Deus em Jesus é a prova máxima da Sua solidariedade para com toda a humanidade. Necessitamos de nos libertar desta cultura individualista ao professar em comunidade, quer por palavras, quer por ações, o Pai-Nosso.
Do Deus Violento ao Deus da paz. Talvez um dos maiores escândalos religiosos do nosso tempo seja, sem dúvida, a violência que se exerce em nome de Deus. Essa imagem é contrária à Sua verdadeira imagem, que é a de um Deus de paz, de misericórdia e libertação, de diálogo e tolerância. O nome de Deus é Verdade, uma verdade que se oferece e se expõe, nunca se impõe.
Do Deus solitário ao Deus Trino. Mardones afirma que na visão da Trindade se sintetiza praticamente tudo quanto se tem vindo a dizer até aqui acerca de Deus. Necessitamos de trocar uma imagem de um Deus individualista e solitário por uma de um Deus da vida, relacional, comunitário, ainda que todas as imagens sejam inadequadas, tal como o são expressas no dogma da Trindade.
Finalmente, há um último capítulo acerca da nossa linguagem acerca de Deus. Toda a linguagem humana é inadequada para o discurso do transcendente. Falar de Deus nos tempos presentes é uma tarefa difícil para uma cultura tão impregnada de racionalismo e materialismo. Verificamos os limites do nosso discurso quando nos queremos referir a Deus e à nossa própria experiência subjetiva e religiosa. Aqui será necessário socorrer-nos do simbólico, através do qual poderemos ter um vislumbre da Realidade Última que dá sentido à realidade e à existência.
Matar a nuestros dioses: un Dios para un creyente adulto, de José María Mardones Martínez
Edição: PPC Editorial, Espanha, 2006
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.