
Albufeira do Sabor na embocadura da Ribeira de Souto: “Há o silêncio que desce pelas encostas banhadas pelo sol, um murmúrio de aves, vertendo-se até ao vale profundo.” Foto © Eugénia Abrunhosa
Há o silêncio que desce pelas encostas banhadas pelo sol, um murmúrio de aves, vertendo-se até ao vale profundo. Souto é um lugar com casas esventradas, imoladas numa intemporalidade de destroços, num esvaziamento. Raras estão de pé: uma, é “alojamento local”; outras, servem também para casas de férias. Quando as visitas se vão embora, vive no lugar só um casal: dois velhos, sem qualquer ligação telefónica para a vila mais próxima, Mogadouro.
A estrada transversal que leva aos lugares do Souto e Santo André é pedregosa, com os seixos a saltarem por todos os lados, mas dizem os especialistas que tem que ser assim porque “estamos no Parque Internacional do Douro”. Em câmara lenta, lá vamos nós, percorrendo cinco quilómetros, literalmente aos saltos. Bem, vimos uma raposita que atravessou a estrada, ao ouvir o carro; depois, no alto do caminho, já a salvo, virou curiosa a cabeça para nós. Que bela plumagem, a cauda; o corpo parecia nu, quase sem pelo, devido ao calor. Na época de Verão, o Lugar do Souto enche-se um pouco mais de vida, graças aos emigrantes. Situado no Douro Interior, era banhado pelo afluente do Douro, o rio Sabor, cuja nascente se situa no Parque Natural de Montesinho, em Bragança: um quase fio de água que se transformava no encontro de outras ribeiras e subafluentes num rio majestoso, bordejado de muitas árvores, campos de pasto para o gado.
Aqui, abundam oliveiras de copa arredondada, com troncos centenários, retorcidos, dançando pelas encostas, de um verde quase branco, ao sol, juntamente com amendoeiras e sobreiros. Giestas, ervas cheirosas, braços de funcho, silvas com amoras pretas, bagas vermelhas. No alto dos montes, penedias e pedras de xisto lustroso, vermelho, misturado com a mica dos veios de quartzo.
Insectos?… Onde estão os gafanhotos, tão comuns que costumavam saltar à frente dos caminhantes nas escarpas do Douro e na Beira Alta? E os escorpiões, chamados no Douro lacraus, debaixo das pedras grandes de xisto? Nenhuns. E os lagartos? Nem um. Só ervas, secas, muitas ervas secas que sem querermos se enrolam nos tornozelos e cortam a pele, como facas. E no lugar, junto às casas, poucos também são os insectos – até as moscas. Só vespas. Ao fim da tarde, exércitos de mosquitos (devido à água da barragem) picam os incautos. De que se alimentam as aves? Poucas voam no ar.
A ribeira do Souto e os lagos do Sabor
Das poucas que há – os pardais, tão comuns, aos bandos, contam-se aqui pelos dedos – vão a um vale estreito, profundo, sombreado de árvores, onde corre agora, no Verão, um fiozinho de água transparente. É aí que as aves vêm beber… Chama-se Ribeira do Souto, afluente do rio Sabor onde as pessoas se banhavam no Verão, pescavam trutas e se divertiam. No Inverno, fica com mais água, diz quem sabe. Mas esta água, agora tão esquiva – devido às alterações climáticas, tal como a ausência de insectos e aves – vai dar a um vale inundado de água estanque, a albufeira da barragem. Por um pouco não inundou os lugares do Souto e de Santo André. Mas apagou um vale, a paisagem, as terras férteis que banhavam o rio. Há árvores cujas pontas secas são visíveis e muitas outras, brancas, cadáveres de pé, na confluência da ribeira com a massa de água estanque, com muitos metros de profundidade.
Esta foi baptizada pomposamente de “Lagos do Sabor”, serpenteando uma estrada novíssima, iguais a outras que abundam por aqui. E convidam-nos a olhar os “lagos”: sem margens, sem vida, sem água corrente, mostrando pontas brancas de árvores mortas. Os animais selvagens não podem atravessar, cortaram-lhes as voltas, os caminhos. Vimos quatro javalis bebés a fugirem pela estrada e meterem-se depois, pelo sopé do monte, por entre a rede que protege a queda de pedras para a estrada. Eram muito pequenos… perderam a mãe? Lá iam eles furando, cheios de medo. São estas cenas que oferecem os belíssimos Lagos do Sabor aos nossos olhos.
Tanta água… para quê?

Roda de madeira abandonada de um carro de bois, Lugar do Souto: “Os campos estão secos; a ribeira que alegrava bichos e homens, quase.” Foto © Eugénia Abrunhosa
Os campos estão secos; a ribeira que alegrava bichos e homens, quase. As amendoeiras dão a quem passa amêndoas já com a casca esverdeada, aberta, oferecendo-se. Oliveiras fartas de frutos ainda verdes, mas cheias de ervas, de ramos nos troncos, desprezadas. Jamais serão colhidas as amêndoas e as azeitonas, dizem-me. Poucas são as árvores tratadas.
Só o rio Douro está saturado de barragens: Carrapatelo; barragem da Régua; muito depois, salvou-se – quase por um fio… – o lugar onde existiam gravuras rupestres, junto ao rio Côa, onde teimavam fazer uma barragem, afogando as gravuras; depois, a do rio Tua; depois, esta, a do Sabor.
Neste momento, há tantas, que já se vendem a empresas energéticas estrangeiras, de França. Já não se investe noutras fontes de energia porque… há já muitas barragens…
No entanto – e isto causa deveras estranheza – Portugal tem que comprar electricidade a França. Porquê? Não tem suficiente! Para que serviram então tantas barragens?
Eu não sei e muita gente também não sabe.
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.