Carlos Maria Antunes, monge cisterciense no Mosteiro do Sobrado na Galiza, brinda-nos com o seu quarto livro. Já havia publicado Atravessar a Própria Solidão (2011) e Só o Pobre se faz Pão (2013) ambos nas edições Paulinas, e um outro Jesus, uma Boa Notícia, em colaboração com Gustavo Sousa Cabral (Fundamentos, 2014).
Proponho-me comentar o último livro, Oh Noite que Guiaste! Este será um comentário necessariamente subjetivo com “algum excesso, fruto da amizade” (p. 109). Tive o privilégio de participar nas conferências de julho de 2022 organizadas pelo Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, em Leiria, do qual emana esta publicação. E uma amizade de longa data me liga a Carlos Maria Antunes, privilégio meu.
O título coloca-nos de imediato na esteira de S. João da Cruz, um santo tão inspirador da vida contemplativa como é a de frei Carlos. Numa primeira leitura verifico a permanência de linhas de força desenvolvidas nos livros anteriores: a nossa profunda vulnerabilidade, a solidão como “lugar para o outro”, a arte da escuta enquanto hospitalidade, viver do desejo de Deus. Este novo livro expande as linhas anteriores e desenvolve uma outra linha, a da compaixão, inscrita na antevisão de uma nova Igreja.
O livro desenrola-se em três partes : o Despertar de um Sonho de Separação; É Preciso Transver o Mundo; A Força da Vulnerabilidade.
Fundamenta-se nas perspetivas de Bernardo de Claraval, claro, mas também de místicos como João da Cruz e Teresa de Ávila, Rumi, Thomas Merton e Simone Weil; poetas como Manoel de Barros, Adélia Prado, José Augusto Mourão, Daniel Faria ou Tolentino Mendonça. Também recorre a autores como Tomáš Halík, José Mattoso, José Frazão Correia, Dietrich Bonhoeffer, Kubler-Ross, Mondadori e, evidentemente, aos escritos do Papa Francisco. Mas, de per si, as palavras e imagens a que recorre Carlos Antunes são profundamente inspiradoras e desafiantes.
A primeira secção do livro recorre a Bernardo de Claraval em diálogo com o místico e poeta Thomas Merton – na epifania e revelação que fizeram este último tornar-se monge –, descrevendo a sua “visão” nesta “interdependência, tão luminosa sobre todos os seres humanos” (p. 17). Citando Claraval, o autor convida-nos a aproximarmo-nos e socorrer os outros “com espírito de suavidade” (p. 25) e insistindo que “a caridade fraterna já é a contemplação de Deus” (p. 27). Carlos Antunes fala no assombro que é um “pontito de nada” que é a pura glória de Deus em cada ser humano, em todos (p.20). Reafirma, com o Principezinho, que só podemos ver com o coração e é no coração que se situa o encontro com o outro. Relembra que Merton nos propõe um longo e lento processo para um triplo conhecimento: de si, do outro e de Deus. A partir daí e segundo Claraval “a caridade fraterna já é a contemplação de Deus” (p. 27), por isso podemos ser chamados “puros de coração” (ibid.).
Na segunda secção do livro encontramos uma nova terminologia “transver o mundo”, introduzida pelo poeta Manoel de Barros, o poeta das coisas simples e das minudências (relembrando Alberto Caeiro) que é, segundo Carlos Antunes, “o mote para representar o compromisso com o outro e a criatividade a que esse compromisso nos desafia” (p. 30) reforçando que “a imaginação que transvê o mundo brota da abundância de vida que habita cada um” (p. 31). Recorre ao pensamento de Simone Weil: “A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: Qual é o teu tormento?” (p. 33).
Carlos Antunes expande este pensamento: “O nosso tormento, exposto aos olhos de Jesus, deixa de ocupar o nosso coração como um ruído ensurdecedor, libertando, criando nele um lugar de hospitalidade para o outro” (p. 34) num convite à transcendência. Continua: “nele os nossos olhos vão aprendendo movimentos demorados e profundos, vão aprendendo compaixão, tornando-se capazes de transver o mundo” (pp. 34-35). Desta forma “eu descubro-me irmão do outro” (p. 35) e fazemos “uma conversa entre mendigos” (p. 37), afirmando-nos numa comum vulnerabilidade. A propósito deste tipo de interação cita Rolheiser (1981): “Poucas coisas na vida contribuem para criar mansidão, compreensão e empatia dentro de nós como a solidão” (p. 40).

Obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor
Bem adequada a esta Quaresma cristã, Carlos Antunes introduz ainda a proposta da “sobriedade como consequência da interioridade” (p. 47), porque “há uma abundância interior que gera um grande desprendimento na relação com as coisas” (ibid.), deixando crescer em nós uma “cultura do cuidado” e introduzindo a ideia de que “é preciso desformar o mundo” (p. 42). Para “desformar o mundo” convida-nos a assumir a nossa “marginalidade enquanto lugar social”, levando-nos à essência dos gestos de Jesus Cristo: o serviço, a amizade com os pobres, o compromisso com o outro e com o mundo (a polis), a criação de uma família mais alargada (“os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”), o acolhimento das mulheres nesta nova dimensão, a comensalidade, essa “Igreja em saída” de que fala o Papa Francisco.
Finalmente, na terceira secção do livro, Carlos Antunes descreve a “força da vulnerabilidade”. Aponta para que “a vulnerabilidade é, aqui e agora, a experiência da glória, no sentido em que ela nos abre à presença de Deus e dos outros (…) sem a qual não há “a aproximação do eu com o tu” (p. 57). Uma formulação muito comum ao autor é a de que “o Forte se faz débil para nos fortalecer com a sua debilidade” (p. 58), fazendo-nos entender a vida de Cristo Jesus. Este o sentido da narrativa da Paixão de que nos estamos a aproximar. Carlos Antunes explicita a linha de continuidade dos encontros de e com Jesus – “onde estás?”: Zaqueu, a Samaritana, Nicodemos, e insiste que “só um Deus ferido pode curar-nos” (p.64). “Um Deus ferido” – é também uma das linhas de força do pensamento de Carlos Antunes que o aproxima de Etty Hillesum.
Finalmente o autor propõe uma interrogação: “E se a margem fosse o Centro?” (p. 65), afirmando que “no Evangelho o que é marginal é fundamental” (p. 66). A “marginalidade” enquanto lugar social, uma proposta bem profunda, também, para esta Quaresma. Carlos Antunes detém-se no paradigmático encontro de Jesus com o leproso (o excluído, o impuro) – “Se quiseres podes curar-me”; “Quero, fica limpo” (Mc 1, 40-45).

Pormenor de obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor
Ao refletir na “força das nossas margens” Carlos Antunes desenvolve a ideia de que “ser discípulo de Jesus é, antes de mais, abrir-se à graça de ‘nascer de novo’ em cada dia” a partir da margem em que nos situamos. E continua: “A relação é o eixo da descoberta da identidade” (p. 78). Assim só posso conhecer Jesus através da relação com ele, uma descoberta diária e nunca acabada. Carlos Antunes diz ainda: “O que em nós é marginal – ou foi vivido como tal – pode ter a força profética de destruir muitas fronteiras” (p. 80).
Carlos Antunes elabora em S. Paulo quando este descreve “um espinho em sua carne” (2 Cor), um espinho que reside entre ele e Deus. O autor considera que um espinho “é algo de incontornável, cravado no centro da nossa vida: uma ausência, um espaço sombrio (…) uma ferida que teima em permanecer aberta, um objeto estranho que põe em causa, ao nosso olhar, a beleza do conjunto” (p. 83). Na perspetiva da relação com Jesus, o espinho faz parte ou está no cerne dessa relação com Deus em Jesus Cristo, é “o homem ferido que acolhe em si a força da graça” (p. 85) porque “há uma relação íntima entre o espinho e a santidade a que somos chamados” (p. 87). Na narrativa da Paixão Jesus é um homem ferido. Nesta perspetiva, o espinho aparece como “a oportunidade” para sermos santos (p. 88), um povo de ressuscitados. Lembra Rumi (místico sufi do século XIII) que diz: “é pela ferida que entra a luz” (p. 90). Cita novamente T. Merton: “Deus está sentado nas ruínas do meu coração a pregar o Evangelho aos pobres” (p. 97). E afirma: “a compaixão é a linguagem da fraternidade” (p. 41).
Apropriado aos tempos que vivemos hoje, Carlos Antunes exprime o desejo de uma nova Igreja, uma Igreja como “Casa da Compaixão” (p. 98), acolhendo as nossas vidas feridas, fragmentadas, porque “diante Deus não existem vidas perdidas” (p. 100). Propõe uma Igreja como espaço de escuta, uma porta aberta, “Casa da Hospitalidade”, uma Igreja que se põe do lado das vítimas (que grande desafio para a Igreja em Portugal!). Uma Igreja que aceita a sua própria vulnerabilidade, uma Igreja de misericórdia: “a compaixão como forma de transver o mundo”… Propõe uma cultura do cuidado na Igreja. Insiste numa Igreja – como isto faz sentido no nosso país! – chamada a fazer “uma cura de humildade” (T. Halík); uma Igreja ela própria à procura, uma Igreja em saída como propõe o Papa Francisco, mas uma Igreja “amante da vida” (p. 118), na escuta silenciosa de Deus. Uma Igreja capaz de “transver o mundo”, uma Igreja que aprende “a nadar no momento presente”.
La vie, c’est être continuellement mouillé.
La vie, c’est nager dans le petit bassin du moment présent.[1] (Sohrab Sepehhri)
Sim, “Oh noite que guiaste!” é uma boa leitura para esta Quaresma.
Carlos Maria Antunes
Oh noite que guiaste! Da inospitalidade ao encontro
Paulinas, 2023
[1] “A vida, é estar-se continuamente molhado
A vida é nadar no pequeno lago do momento presente” (Sohrab Sepehhri)
Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior e participante do Movimento do Graal; t.m.vasconcelos49@gmail.com