
O mar na ilha de Okinawa. Foto © Teresa Vasconcelos
Depois de ter contado o que foi a viagem deste grupo de educadores/educadoras de infância ao Japão por terras de Quioto e, antes, em Tóquio, detenho-me agora na ilha de Okinawa.
A dor faz o homem pensar;
pensar faz o homem sábio;
sábio faz o homem tolerante.
(da tradição de Okinawa, Japão)
A ilha de Okinawa pertence ao arquipélago RyuKyu (170 ilhas) e a capital é Naha. Fica mais perto de Taiwan do que de Tóquio, numa importante região geoestratégica envolvendo Japão, China, Coreia, Indonésia e Polinésia. Estamos, portanto, bem a sul, perto do trópico de Câncer. Clima subtropical.
Depois da Segunda Guerra Mundial e da Batalha de Okinawa em 1945, esta ilha permaneceu sob a administração dos Estados Unidos durante mais de 25 anos, período em que ali estabeleceram várias bases militares. Só em 1972 Okinawa foi devolvida ao Japão. No entanto os Estados Unidos ainda hoje mantêm as suas bases militares, com significativa ambivalência por parte da população. A batalha de Okinawa deu-se antes do lançamento das bombas atómicas em Hiroxima e Nagasáqui (6 e 9 de Agosto de 1945). Uma história muito triste para toda a humanidade. Talvez não conheçamos as subtilezas deste horrível acontecimento. Entre os habitantes destas ilhas o ressentimento persiste quanto à presença militar americana, que continua até hoje. Durante a guerra muitas crianças okinawanas foram usadas em unidades de combate japonesas. Pode-se imaginar o dilaceramento que estes terríveis acontecimentos colocaram entre o Japão norte e as ilhas do sul. E as famílias que passaram por tudo isto sem poder fazer nada.
A força de ocupação americana nos territórios japoneses, incluindo em Okinawa, cometeu violações em massa. Os soldados japoneses vindos do norte também violaram muitas mulheres okinawanas. Havia prostituição em larga escala. Triturada entre o Japão Norte e os Estados Unidos a ilha relembra esta tragédia no Parque Memorial da Paz que está revestido por pedras gravadas com os nomes das pessoas que morreram na batalha.
Fora da cidade de Naha fica a antiga sede subterrânea da Marinha japonesa – infelizmente só três elementos do grupo puderam visitar, partilhando depois algumas fotografias. Na entrada encontra-se um pequeno museu, contando a história da batalha e depois disso desce-se aos túneis. Relembro que, no final da batalha, alguns generais japoneses preferiram fazer harakiri a entregar-se.

Sede subterrânea da Marinha japonesa. Foto © Teresa Vasconcelos
Esta ilha tornou-se parte do império japonês apenas no século XVII. Antes era um reino autónomo, o reino de Ryukyu. Assim há claras diferenças culturais entre os okinawanos e os japoneses do norte. Por outro lado, as bases americanas trouxeram uma influência cultural fortíssima. Só na rua principal de Naha, esbarrei com MacDonald’s, Starbucks, lojas cheias de enfeites para o Halloween e… também nos dois jardins de infância que visitámos, imagens de bruxinhas, abóboras, etc. Vivemos na era da globalização, não há dúvida. Tudo é comerciável…
A dieta alimentar de Okinawa é excelente porque contém alimentos de baixas calorias mas nutricionalmente muito bons: batata doce, ananás (excelente!), outras frutas, vários legumes, pouca carne e laticínios, muita soja, grande variedade de peixe. Um estudo (2012) demonstrou que muitas pessoas com mais de 100 anos eram de Okinawa. Atribui-se a “responsabilidade” dessa longevidade à dieta alimentar.
Apanhámos 30 ou mais graus de temperatura. Só refrescava à noite. Levaram-nos ao célebre Aquário de Okinawa, a abarrotar de visitantes. Diria que a diferença em relação ao nosso era a variedade de peixes tropicais que depois encontrámos no mercado de Okinawa. O imenso tanque de golfinhos também abrigava uma baleia.
As cores de Okinawa

Oike Nursery School: repare-se no colorido… Foto © Teresa Vasconcelos
A Oike Nursery School foi a primeira nursery school (creche e jardim de infância) que visitámos. Repare-se no colorido. Estamos na Okinawa das muitas cores, bem distante da subtileza do norte do Japão. A grande imigração de habitantes de Taiwan ou da China continental ou mesmo das Filipinas gera uma paisagem humana multicultural, bem diferente do Japão Norte. Talvez menos subtil e sóbria… mas muito alegre e festiva.
Mais a norte, fora da cidade de Naha, visitámos um outro jardim de infância – Yama Biko Hoikuen Day Nursery School – que data de 1945. É uma das mais antigas instituições educativas de Okinawa, inicialmente destinada a acolher crianças com experiências dolorosas de guerra. Tem uma secção muito interessante num edifício autónomo, um centro destinado a mães que, cansadas de estar sozinhas em casa com as crianças, se deslocam ao centro, convivem com outras mães ou adultos enquanto as crianças brincam entre si. A equipa pedagógica nutre um carinho muito especial por este espaço inteiramente não formal, onde uma mulher/mãe se pode re-criar na interação com outros adultos. Pode-se ver ao fundo um mini-bar para refrescos, etc. Para as crianças não falta de material de jogo, improvisação, sob a supervisão de adultos e… uma bem tropical rede de descanso que poderá ser utilizada por uma mãe.
Voltámos às ruas antigas de Daha. A influência chinesa é dominante. Também não podemos esquecer que Okinawa é uma ilha sujeita a muitos tufões e ventanias imprevistas. Estamos bem no sul. Os edifícios são maciços. As típicas casas modernas de Okinawa são feitas de cimento com janelas vedadas.
Se as casas têm telhas estas não são encaixadas ao jeito português. As telhas são seguras entre si com cimento. Os telhados são geralmente vermelhos, inspirados no estilo chinês. O mercado do peixe é fascinante. Peixes tropicais, búzios de enorme dimensão, mariscos. As cores de Okinawa, sim.

Peixes tropicais no mercado de Okinawa. Foto © Teresa Vasconcelos
A creche e jardim de infância Panda foi o último por nós visitado. Trata-se de um estabelecimento privado reconhecido pela sua tradição familiar, que tem passado entre as gerações. É conhecido pela ênfase posta em danças e atividades de grande movimento que implicam atenção e disciplina por parte do grupo.
Vimos crianças espontâneas e simultaneamente focalizadas, demonstrando grande alegria ao desenvolver as danças e suas coreografias (incluindo crianças com necessidades educativas especiais, sempre acompanhadas de um adulto), com o apoio de instrumentos de música locais. Uma das educadoras afirmou: “Tudo isto exige uma construção coletiva progressiva até chegar ao ‘produto final’…”, o que pressupõe uma metódica planificação do processo. Esse produto final pudemos presenciar. Os mais velhos (6 anos) brindaram-nos com uma dança guerreira, vestidos a rigor e fazendo passos elaborados.
Lembro que muitas danças rituais e guerreiras fazem parte da tradição de Okinawa. Essa é a sua história. Um reino que teve de se defender do Japão Norte e da China… Não esquecemos que foi nesta ilha que começou a desenvolver-se o karaté, uma arte marcial indígena. No norte pudemos observar que em algumas escolas infantis se iniciava as crianças a um outro desporto, o sumô. O sumô tem origem em rituais religiosos do xintoísmo em que um humano luta com um kami (um espírito divino). Muito diferente das artes marciais do sul.
Procurámos sempre agradecer as visitas com um jantar num espaço belo. Desta vez um restaurante típico do Sul no meio de um grande e sinuoso parque florestal com subidas, descidas, quedas de água, subtil iluminação. Olhei com especial atenção para a nossa anfitriã, professora na universidade de Kobi e que nos acompanhou desde Quioto até ao sul. Ouso dizer que o contacto de tantos dias com este irreverente grupo de portugueses terá constituído para ela uma experiência importante e simultaneamente desconcertante. Mas riu muito connosco, relaxou… o que foi tão saudável e a tornou tão mais divertida.
Mari Mori levou-nos ainda a uma aldeia típica onde se fabricam barros tradicionais. A cerâmica Tsuboya até há bem pouco tempo era cozida a lenha em enormes edifícios transversais que suportavam os fornos.
Subida pelas pedras do Castelo

Barros de Okinawa: a cerâmica Tsuboya até há bem pouco tempo era cozida a lenha. Foto © Teresa Vasconcelos
Finalmente não poderíamos deixar de subir ao Castelo de Shuriju construído no século XIV com influências chinesas e japonesas. Depois da batalha de Okinawa ficou em ruínas e, em 2019, um incêndio destruiu parcialmente o castelo que está neste momento em fase de reconstrução. Este castelo está numa localização estratégica, no alto e com vista para o mar, rodeado de um enorme parque. Transposto o pórtico principal logo à entrada encontramos a porta de pedra do antigo templo Sonolyan-utaki, considerado património da UNESCO.
O incêndio de 2019 destruiu parcialmente todo este belíssimo conjunto arquitectónico. Uma boa parte do castelo está em processo de reconstrução. É realmente extraordinária a resiliência deste povo! Ardeu? Pois não se espera. Recupera-se o possível e passa-se novamente a reconstruir. Sem comiserações. É a vida. O primeiro pórtico é o Kankaimon e significa “bem-vindo”. O portão foi nomeado assim para expressar as boas-vindas aos enviados que visitavam o Castelo de Shuri como representantes do Imperador chinês.

Pórtico de boas-vindas no castelo de Shuriju. Foto © Teresa Vasconcelos
De cada lado da entrada encontramos os dois típicos dragões em pedra: um de boca aberta (macho), outro de boca fechada (fêmea). Também se colocavam – mas em barro de Tsuboya – nos telhados das casas para protegê-las dos maus espíritos. A função do dragão macho é afastar os espíritos malignos das casas, comércios, hospitais, escolas ou quaisquer outros lugares onde forem colocados. A fêmea mantém a alegria, a harmonia, o fluxo de boas energias. Enfim, papéis claramente definidos…
Transposto o pórtico estão os guardas vestidos com os trajes tradicionais bem diferentes daquilo que é usado no norte. O estilo guerreiro permanece. São muito belos os elaborados remates nas paredes. O parque tem uma sumptuosa vegetação com árvores milenares. Grupos de jovens fazem uma visita de estudo parque fora. Filas meticulosamente “indianas”. Professor ou monitor à frente. Nada de grupos circulares. O que diz alguma coisa da organização escolar.
O povo japonês, seja do Norte seja do Sul, incarna a arte de reconstruir a partir das cinzas com persistência, rápida e ordenadamente, para que a vida brote novamente em sua insistente teimosia. Como afirmei numa anterior narrativa, nada de autocomiseração.
Nada de vitimização. Continuar, continuar, continuar. Passaram muitos anos desde 1945. Reúnem-se as cinzas e reconstrói-se.
Há raízes que estão profundamente na terra. Destroem-nos? Nós nos reconstruiremos! Daí a sabedoria deste maravilhoso pensamento da tradição de Okinawa:
A dor faz o homem pensar;
pensar faz o homem sábio;
sábio faz o homem tolerante.
Zamami, luz caprichosa

Zamami, mais um paraíso a saborear. Foto © Teresa Vasconcelos
No último dia da nossa permanência na ilha de Okinawa, “cumpridas” todas as visitas, e na véspera de regressar a Tóquio, alguns de nós decidiram ir à ilha de Zamami, a cerca de uma hora de barco.
Uns queriam fazer mergulho. Pela minha parte queria simplesmente sentar-me a olhar o mar e poder mergulhar no Pacífico. Ao chegar, apanhámos um velho autocarro que nos deixou, depois de uma sinuosa viagem, numa das primeiras praias junto ao porto. Mais um paraíso para saborear.
As fotografias demonstram a beleza caprichosa desta pequena praia com vegetação bem verde até à praia de areia fina. Surpreendentemente, o pequeno areal estava habitado por corais secos e muito brancos. Fui recolhendo alguns deles com formas mais intrincadas. Mas comecei por mergulhar no mar. Nadar e boiar num mar azul com as tonalidades que Vieira da Silva tão bem definiu:
um azul cerúleo para voar alto.
um azul cobalto para a felicidade.|
um azul ultramarino para estimular o espírito
(citada por Tolentino Mendonça, Expresso, 18 Novembro 2022)
teve novamente sabor de paraíso para mim. A água era simultaneamente tépida e refrescante (estamos em pleno outono). Mergulhando via peixes a nadar na transparência da água… fitando o horizonte habitado por outras ilhas mas salientando-se um mar azul em tonalidades diversas, porque “nele é que espelhou o céu”, como diz Pessoa. A luz era caprichosa: por vezes acinzentava-se e depois irrompia de novo o sol. Sentei-me na areia e depois alonguei-me no pano que me servia de toalha, qual gato estirado ao sol.
Um pequeno incêndio na floresta acima de nós obrigou os nadadores-salvadores a mandar-nos seguir para outra praia. Sobrevoavam helicópteros. Não há dúvida, os japoneses são mesmo cautelosos com os incêndios. A outra praia ainda tinha mais corais na areia, o que dificultou a circulação do meu pé magoado. Mas ousei mergulhar novamente. Não podia deixar de o fazer… A água do mar era boa para o corpo e para a alma! Que dom!

Um mar azul com as tonalidades que Vieira da Silva tão bem definiu. Foto © Teresa Vasconcelos
Apanhámos novo autocarro para o porto de modo a chegarmos a tempo do barco de regresso a Okinawa. Mais uma vez me afastei do grupo, bem menos barulhento. Estávamos cansados e alguns dormitavam. O barco, feito berço, balançava nas ondas. Com outros intrépidos, mantinha-me cá fora apesar do vento, deixando que as ondas batessem no casco do barco e nos brindassem com múltiplas gotículas. Que bom!
Decidi não ir jantar com o grupo ao centro de Daha. Comi qualquer coisa no bar do hotel e deixei-me ficar em silêncio, os olhos ainda cheios das maravilhas daquele dia. Preferia ficar na varanda do meu quarto a olhar para o porto de mar. Precisava de paz.
Lembrei-me de uma manifestação que vira em Quioto, de pessoas mais velhas, contra a guerra na Ucrânia. Bem inscrito ainda nas suas faces o pavor da guerra, o terror de Hiroxima, a capitulação forçada. Sabíamos que neste preciso momento navios da Coreia do Norte deslizavam pelo mar do Japão. Apeteceu-me juntar-me aos manifestantes. Apenas acenei com gestos e lágrimas nos olhos. Cidadania na terceira idade. Era tão belo de se ver. E a polícia respeitosamente a enquadrá-los, a protegê-los. Não mais guerra…
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e participa no Movimento do Graal.
Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com