
“A bandeira universalista dos Jogos Olímpicos e a mensagem democrática do desporto, não deixam, contudo, de ser duas imagens falaciosas bem representativas da nossa contemporaneidade.”
Não há dúvida de que os Jogos Olímpicos são atualmente um dos eventos de grande importância no mundo desportivo. Mais do que isso, são dos poucos acontecimentos que conseguem congregar o universo humano num espaço de paz e concordância.
Embora o conceito de desporto, como próprio das criações humanas, tenha nascido de uma raiz cultural particular e não comum, o dinamismo dos anos demonstrou que a globalidade das nações, de uma forma ou de outra, aderiu a este modelo de desafio físico – e psicológico –, onde a competição entre pessoas é motivo de agregação comunitária, de apoio e investimento social, e de um caráter de orgulho coletivo imiscuído numa certa afirmação nacional.
A bandeira universalista dos Jogos Olímpicos e a mensagem democrática do desporto, onde um indivíduo de qualquer origem ou estrato social pode ambicionar a glória maior, não deixam, contudo, de ser duas imagens falaciosas bem representativas da nossa contemporaneidade.
Observando os finalistas e os medalhados ao longo da História dos Jogos, facilmente nos apercebemos como a maioria das provas são recorrentemente dominadas pelos mesmos países. Será mais pluralista nos últimos anos, dirão. Ainda assim, são já demasiadas as décadas onde a representação alargada à grande maioria das nações não alterou significativamente essa realidade. Para não falar de modalidades como a vela, o esgrima ou o desporto equestre onde os participantes vêm quase exclusivamente de países ricos, exemplos como a natação ou a ginástica são a demonstração de que o desporto não é ainda um domínio de verdadeira equidade e onde o vencedor não é, com rigor, o melhor entre os Homens. Quantos talentos e campeões se encontrariam se o modelo de captação e treino de jovens que existe na América do Norte, no Extremo Oriente ou em alguns países europeus pudesse ser aplicado a países como o Congo ou o Bangladesh?
Por outro lado, parece evidente que a origem dos indivíduos, além daquela que constitui a nacionalidade, possa ser um fator decisivo em algumas modalidades. A predisposição genética – domínio este em que o conhecimento da medicina e da fisiologia humana se encontram profundamente atrasados devido ao paradigma do antirracismo que se impôs e que impede qualquer tipo de questionamento necessário ao desenvolvimento científico – demonstra-se, por exemplo, no atletismo em que várias provas de corrida de fundo são dominadas por atletas originários da África Oriental. Todavia, na velocidade há uma desproporção na representatividade entre caribenhos e indivíduos da África Ocidental que está ainda por clarificar.
O desporto avança e é tudo menos estático. Quebrar um recorde ou alcançar um feito até então inatingível é algo frequente e até diário a cada Olimpíada. Independentemente da modalidade, assistimos a um crescente profissionalismo e especialização que parecem não ter olhos para abrandar. Mais do que um talento congénito, hoje o valor da técnica e do treino centrado nos mais pequenos detalhes ganharam uma importância que nunca haviam tido.
É incontestável o peso científico que o desporto adquiriu. Porém, e com algum paradoxo, o seu caráter de imponderabilidade é o maior responsável pela exaltação e arrebatamento vivido entre os espetadores, aqueles que, em última instância, são a razão de sobrevivência do desporto à escala internacional. Há uma certa religiosidade na competição desportiva, e é talvez nesse domínio metafísico que reside não só a sua popularidade mas provavelmente a sua própria razão de existir.
Não apenas entre os que assistem, mas também refletido nos rostos e corpos dos protagonistas, a transparência emotiva de quem vence ou de quem perde, a euforia ou o desespero sentido ao extremo, fazem parte deste espetáculo humano que, na aceção mais crua do termo, se torna animalesco.
O vencedor treinou durante anos para estar ali. O perdedor também. Ambos concentraram a sua vida, não se dedicando a mais nada senão ao trabalho diário que permitisse levantar uma barra de pesos, ou saltar de uma prancha, ou derrubar um oponente, tocá-lo, ultrapassá-lo. Dentro da cabeça só: vencer, vencer, vencer. Fazer os mesmos exercícios sem fim, sem parar. Tudo o resto não importa. Concentração. Determinação. Obsessão. Fazer tudo por alcançar o objetivo estabelecido.
No desporto, na profissão, na nossa afirmação social, o sucesso parece cada vez mais advir apenas da ultraespecialização. Ambiciona-se a máquina, o científico, a obstinação. Ser o melhor a fazer um pormenor, podendo ser nulo em tudo o resto.
Ao assistir aos Jogos Olímpicos não vemos só desporto. Vemos o espelho dos nossos dias. A glória máxima ou a indiferença absoluta. A possibilidade de ter uma voz para o mundo ou de ter as vozes do mundo gritando dentro de si. A compaixão por histórias pessoais de uns ilustres famosos ou as bandeiras desconhecidas de países que não se sabe onde ficam. O politicamente correto e o politicamente aceitável. O deslumbre da tecnologia perfeita e os bastidores que negamos querer saber.
Os Jogos Olímpicos são um evento da universalidade humana: da sua força e da sua fraqueza, da sua honestidade e da sua falsidade, da afirmação da sua ciência e da sua intrínseca religiosidade, da desigualdade em que vivemos e do desconhecimento que perpetuamos sobre o outro.
Tomás Sopas Bandeira é médico, vive e trabalha em Genebra (Suíça) e é autor de Zahra.