
Detalhe de “Portrait d’une femme noire” (título do Salão de 1800: “Portrait de négresse”; outro título: “Portait présumé de Madeleine”). Une femme noire la poitrine devetue. Pintura de Marie-Guillemine Benoist (1768-1826), © Musée du Louvre.
[…] É importante interrogarmo-nos sobre o significado da modernidade, antes de nos servirmos dela como instrumento conceptual para estabelecer descriminações discutíveis entre seres e sociedades. Em particular, como componente essencial do universo de referência própria do desenvolvimento, ela opõe-se necessariamente à tradição, categoria percebida à priori de maneira negativa. […].
Ngoenha (1994:72), O Retorno do Bom Selvagem.
O Retorno do Bom Selvagem, obra do filósofo moçambicano Severino Ngoenha foi, até onde me recordo, a primeira obra de reflexões filosóficas que li e me marcou. Foi lá que aprendi que “a virtude está no meio” e que, perante uma necessidade de selecção num conjunto que integra o conhecimento, a arte, a cultura, o modo de fazer, entre outros elementos ligados à cultura, o melhor a fazer-se é escolher uma perspectiva “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, ou seja, utilizando a perspectiva de Ngoenha, fazer-se o “equilíbrio ecológico”. Até porque, tal como ele refere, a cultura e o conhecimento vão sendo conhecidos por etapas.
É sobre o (des)equilíbrio que quero falar, sobretudo, aquele de que precisamos para nos inserirmos e convivermos, entre seres humanos, na modernidade. E, inspirando-me no autor acabado de mencionar, há que sermos “bons selvagens”, nem tanto ligados à antiguidade, tal como Tarzan, nem tanto à modernidade utilitarista ou mercantilista.
Todo este introito vem a propósito de algumas atitudes pouco abonatórias adoptadas como política ou como procedimento em algumas instituições moçambicanas. Refiro-me ao preconceito de que os ombros das mulheres são sedutores e que os seus cabelos, quanto menos naturais, melhor. Ainda não me fiz entender, eu sei.
Em tempos, foram colocados comunicados em grande parte de diferentes estabelecimentos de instituições públicas a interditarem a entrada de pessoas vestidas de modo “inadequado”. E isso teve impacto muito negativo nos hospitais. A questão que se coloca é que o que nos leva a esse lugar é sempre uma preocupação, que muitas das vezes nem nos permite ponderar sobre seja o que for, principalmente a escolher o traje “adequado” para lá nos apresentarmos.
No ano passado, o Observatório Cidadão para a Saúde solicitou ao ministro da Saúde a revogação dessa obstrução. E, curiosamente, este ano, há cerca de um mês, vimos anunciada a circular nº.1009/MISAU/290/2021, através de um cartaz que continha a inscrição “É Expressamente PROIBIDO que os profissionais do Sistema Nacional de Saúde, RESTRINJAM OU IMPEÇAM o acesso dos utentes às unidades sanitárias em função da indumentária e aparência.” Mais abaixo, no anúncio, foram colocadas figuras contendo as seguintes descrições: “vestidos, saias curtas ou blusas de alças; roupa de ginástica, pessoas com dread, calções, chinelos, pés descalços.”
Do ponto de vista de edição, nesse anúncio, por cima da expressão “É expressamente PROIBIDO” tinha sido colocado um X. Por baixo dela é que vinha a outra informação a que me referi anteriormente. A nível visual, o anúncio publicitário era desafiador para a compreensão de alguns (des)atentos?, cuja interpretação, para a vox populi, significava exactamente o contrário do que se desejava comunicar. Para os mais esclarecidos, a leitura que se fazia era a de que era proibido proibir. Para qualquer que seja a análise, tratando-se de matéria sensível, talvez tivesse sido melhor comunicar-se de modo mais claro, porque “Cada homem, uma raça”, lembrando o título de uma obra do escritor Mia Couto.
Seduzir os mortos?
Lembrei-me desses aspectos todos, quando, há dias, fui ao cemitério trajada de um vestido de alça fina e foi-me barrada a entrada, condicionando-a à colocação de um lenço nos ombros. O meu irmão chegou, em tom de gozo, a dizer que eu não deveria seduzir os mortos. Primeiro refilei com a senhora que me tinha interpelado e barrado a entrada, mas, de seguida, para não perder mais tempo, usei um cachecol e prossegui o meu caminho.
Após esse episódio não foram poucas histórias que fui ouvindo acerca dessa “norma”. Perguntei a muita gente, mas nunca ninguém a viu escrita em algum lugar. Entretanto, diz-se que ela existe. Recordei-me então de uma vez que eu ia a entrar para um hospital público, para visitar um familiar e foi-me proibida a entrada e ignorei o aviso. Transpus a porta e fui tratar do que lá me levou. O meu familiar precisava de medicamentos que vinham de fora do hospital, porque aquele não os tinha. À minha saída, por sorte, cruzei-me com uma enfermeira com a qual lamentei os factos; ao que me respondeu que não percebia a razão dessa interdição, uma vez que algumas senhoras que frequentavam aquele hospital iam de muito longe e, por vezes, não podiam ser atendidas, por apresentarem ombros nus. E socorriam-se de capulanas de outras senhoras, para os cobrir.
A sorte nisso tudo é que, tradicionalmente, em Moçambique, educam-se as meninas e as senhoras a andarem sempre com uma capulana na mala, porque, por diferentes razões, podem precisar delas. Mas isso não tem a ver com as referidas normas institucionais, é apenas um costume para prevenir imprevistos. E esse costume é o que protege muitas mulheres de toda essa agressão a que me venho referindo. Felizmente, a alta gestão do topo do pelouro da saúde anulou essa interdição, através da circular que mencionei.
No âmbito da conversa que surgiu após a minha obstrução de entrar no cemitério, um familiar contou-me que a sua filha tinha sido impedida de tirar uma fotografia biométrica “tipo passe”, para ser colocada no Bilhete de Identidade, pelo facto de ter dread locks; entretanto no mesmo lugar, era permitido que mulheres fizessem o mesmo tipo de fotos, trajando perucas ou outros tipos de cabelo postiço, o que significa que, das diferentes interpretações que os funcionários públicos fazem sobre decoro ou aprumo, entre cabelo próprio e postiço, a escolha vai para o que tem sido considerado o “ser-se moderno” ou, diria, assimilado.
O que não se percebe é como é que direitos fundamentais são negados às pessoas, num país tradicionalmente nu e eminentemente pobre. Ninguém negará que as posses para se comprar sapatos, cabelo postiço ou uma capulana do pé para mão não são para todos. Não cabe na cabeça de gente equilibrada que ainda enfrentemos, neste século, inibição de frequentar determinados lugares, sendo estigmatizados por pressa, preocupação, descuido ou pobreza.
Nem nus nem demasiado postiços
Há um apelo sugerido n´O Retorno do Bom Selvagem: o de que, perante a escolha entre o se ser bastante naturalistas ou bastante utilitaristas, tentemos encontrar um meio termo ou seja, para o que possa derivar para os contextos que narrei, nem se andar nu, nem demasiadamente postiço, sob pena de até adulterarmos a nossa fisionomia num documento tão importante quanto o de identidade, por exemplo.
A grande questão é que, mesmo que as instituições públicas informem os seus colaboradores que não há necessidade de se fazer controlo de vestuário ou do penteado nos seus estabelecimentos e que cada instituição se deve focar no seu core business, a tirania pelo poder é uma doença difícil de curar. Agora em tempos de pandemia da covid-19, temos visto em alguns estabelecimentos bancários que quem decide se o cidadão deve ou não entrar, para ser atendido nessa instituição, no lugar de ser o colaborador do banco é o segurança, porque este tem muito gosto em exercer o seu poder de controlar a entrada e a saída de pessoas. É assim que, em nome de se reduzir a circulação de pessoas ou de aglomerados em bancos, os bancários do front office, por vezes, fiquem parados no seu trabalho, por não terem quem atender, quando a bicha, do lado de fora fica a abarrotar de gente que espera à mercê das regras do segurança.
E a nós, cidadãos, só nos resta indignarmo-nos perante tanta desregulamentação e atropelos à cidadania, porque as queixas quanto ao que narrei são imensas, mas a mentalidade dos atendentes em instituições públicas e/ou outras, nada têm a ver com a aprendizagem ou aquisição de cultura ou de conhecimento por etapas, mas sim com a sua arrogância.
Dias ainda virão em que o “equilíbrio ecológico” se tornará uma realidade entre os seres humanos; basta que “viremos a página” e que tentemos perceber a razão da interdição da circulação de cidadãos e de voos provenientes da África Austral na Europa, facto muito recentemente acontecido a propósito da variante ómicrom. As discriminações discutíveis, resultam, muitas das vezes, de actos pouco reflectidos. E assim vamos indo na modernidade que de humanidade pouco tem.
Sara Jona Laisse é membro do movimento Graal, em Moçambique, e docente de Técnicas de Expressão na Universidade Católica de Moçambique, em Maputo. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.