
Várias freiras referem situações reiteradas de “abusos de poder e abusos psicológicos ou emocionais, principalmente por meio de atos de crueldade, humilhação e negação de assistência médica ou psicológica”. Ilustração © Hemera.
“Não sei para onde ir, só quero seguir Jesus, e aqui não é possível … porque sei que a minha congregação não se importa comigo”. O desabafo é de uma religiosa australiana que se diz abusada por um padre, em declarações reunidas num livro acabado de sair, com os relatos de violências por parte de 11 freiras.
O livro, intitulado Il Velo del Silenzio (O Véu do Silêncio), é da autoria do jornalista italiano Salvatore Cernuzio, tem prefácio da irmã missionária Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo dos Bispos, e introdução do padre jesuíta Giovanni Cucci. Este último é professor de psicologia e filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e escreveu há cerca de um ano um artigo que na altura causou impacto, no qual chamava a atenção da Igreja para uma problemática mais larga de abusos, presentes sobretudo em comunidades religiosas femininas.
Quem trouxe a matéria do livro a público foi a jornalista Cindy Wooden, da agência Catholic News Service, num artigo que o site da revista America, da Companhia de Jesus, acaba de publicar.
A ideia do livro surgiu há cerca de um ano, poucos dias depois de ter sido publicado o artigo de Cucci, quando o autor encontrou uma amiga de infância que tinha estado dez anos numa comunidade de freiras de clausura. Ainda magoada com o que lhe sucedera, acabou por contar-lhe que, ao fim desse tempo todo, um “tribunal” de irmãs mais velhas decidiu que ela não tinha vocação e mandou-a embora.
A amiga concordou em contactar outras mulheres com histórias semelhantes e assim surgiram as entrevistas que compõem boa parte de O Véu do Silêncio. Uma das ex-freiras conta que foi abusada sexualmente por um padre, mas que, ao contar o sucedido às superioras, elas concluíram que foi ela que o seduziu.
Várias referem situações reiteradas de “abusos de poder e abusos psicológicos ou emocionais, principalmente por meio de atos de crueldade, humilhação e negação de assistência médica ou psicológica”. No noviciado, por exemplo, eram obrigadas a “pedir permissão para fazer ou ter qualquer coisa – inclusive para tomar banho ou ter produtos higiênicos durante o ciclo menstrual”.
A religiosa que diz ter sido abusada por um padre, estando agora em busca de condições para abandonar a comunidade, comenta: “Como já ouvi tantas vezes: a culpa é sempre de quem sai (…). ‘Resguardar’ o bom nome da instituição religiosa é a prioridade, sacrificando a vítima”.

No prefácio, a subsecretária-geral do Sínodo, Nathalie Becquart, citada no artigo que vimos seguindo, nota que a Igreja deve ouvir as vítimas deste tipo de abusos e reconhecer que “a vida consagrada em toda a sua diversidade, como qualquer realidade na Igreja, pode gerar o melhor ou o pior” nas pessoas.
“O pior é quando os votos religiosos são interpretados e implementados de uma forma que infantiliza, oprime ou mesmo manipula e destrói pessoas”, em vez de “um caminho de crescimento humano e espiritual, um caminho de amadurecimento que faz crescer a liberdade das pessoas porque a autoridade é chamada a promover a dignidade”, acrescenta.
Na introdução do livro, o padre Cucci chama, por sua vez, a atenção para alguns aspetos transversais aos casos das 11 mulheres entrevistadas. Um deles é “a tendência de algumas ordens mais tradicionais de manter o mesmo superior ou superiores no cargo por décadas, o que pode levá-las a “confundir a sua vontade com a vontade de Deus” para as irmãs na sua comunidade. Por outro lado, “confundem uniformidade com a unidade ou paz dentro da comunidade”, tratando qualquer forma de questionamento como “um desafio ao superior” ou mesmo “uma rejeição à vontade de Deus”.