
Em março de 2022, Ortega havia já ordenado a expulsão do país do representante permanente do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Foto © CCC Cesar Perez.
O regime autoritário de Daniel Ortega decidiu esta quarta-feira, 10 de maio, acabar com a Cruz Vermelha da Nicarágua, criada em 1931, e confiscar todos os seus bens, em retaliação pelo facto de esta organização ter acudido e cuidado das vítimas de violência policial, aquando das grandes movimentações populares antigovernamentais, em 2018.
A decisão foi tomada por unanimidade pela Assembleia Nacional controlada pela Frente Sandinista, através de uma lei que derrogou a legislação que havia instituído a instituição Cruz Vermelha (CRN, da sigla em espanhol), vinculada à Cruz Vermelha Internacional e ao Crescente Vermelho. O mesmo diploma instituiu uma entidade análoga nacional, sob controlo do Ministério da Saúde, que administrará “todo o património, bens e ações” até agora da CRN.
Esta dissolução soma-se a um número de largas centenas de outras organizações que foram também dissolvidas ou cuja licença de funcionamento foi cancelada. As razões invocadas são geralmente do mesmo tipo: violação de legislação em vigor.
No caso da dissolução da Cruz Vermelha Nicaraguense, os proponentes da iniciativa legislativa foram claros quanto ao principal motivo, segundo notícia de El País: “Nos atos ocorridos em 2018, que ameaçaram a paz e a estabilidade da nação, alguns ramos desta Associação [CRN] agiram contra estes princípios [imparcialidade, humanidade e neutralidade] e contra o seu Ato Constitutivo e Estatutos; e a própria Associação transgrediu as leis do país ao ignorar e até apoiar as ações dos seus ramos”, afirma o documento de justificação.
A pressão junto da CRN já vinha de trás. Segundo a Associated Press (AP), em março de 2022, Ortega ordenou a expulsão do país do representante permanente do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Na altura, não foi dada qualquer razão para a medida. Porém, a AP aduz factos que ajudam a contextualizar a decisão agora tomada. “Na sequência dos protestos sociais contra Ortega em 2018 – refere a AP – membros do CICV [Comité Internacional da Criz Vermelha] na Nicarágua visitaram opositores presos para garantir a sua saúde e segurança, embora as suas ações tenham sido sempre mantidas sob silêncio, um comportamento que a instituição aplica a nível internacional”.
Os acontecimentos de 2018 parecem ter marcado, assim, uma etapa nova de endurecimento do regime, de perseguição de opositores ou meros críticos de medidas do regime, de silenciamento de meios de comunicação independentes e de um clima de violência sobre a população.
Um caso dos últimos dias foi a decisão do Supremo Tribunal de Justiça da Nicarágua de retirar à jurista e defensora dos direitos humanos Yonarqui Martínez o reconhecimento dos seus títulos profissionais de advogada e de notária, obrigando-a a entregar as credenciais que tem no prazo de 24 horas. A medida surge uma semana depois de Yonarqui Martínez ter divulgado na sua conta de Twitter reproduções de documentos de processos arbitrários executados pelo poder judicial.
Igreja Católica: 90 incidentes nos primeiros três meses de 2023

A Igreja Católica, com uma presença significativa no país, tem sido, especialmente desde 2018, uma das instituições mais massacradas, com perseguições, prisões, expulsões, proibições e uma constante pressão desde as comunidades mais ativas aos mais altos responsáveis.
Por estes dias, foi publicado mais um relatório que reúne informação sobre essa atividade persecutória nos últimos cinco anos, incorporando, nesta terceira edição, o que se passou nos meses mais recentes. É sua autora Martha Patricia Molina, ativista dos direitos humanos, que faz este minucioso levantamento a partir de fora do país, visto ser ela própria uma exilada.
O relatório, de mais de 250 páginas, põe em relevo o agravamento da sanha persecutória nos primeiros três meses deste ano, comparativamente com períodos análogos em anos anteriores. De facto, os 90 incidentes do primeiro trimestre de 2023 são quase o dobro do conjunto dos quatro anos anteriores.
O caso do bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, talvez seja o mais emblemático. Percebeu-se que Ortega pretendeu, pela pressão e pela ameaça, levar o prelado a desistir e exilar-se nos Estados Unidos, na operação organizada para um vasto conjunto de presos políticos. O bispo Alvarez preferiu, no entanto, correr os riscos de uma prisão certamente violenta a fazer a vontade ao presidente e à vice-presidente sua esposa. Com isso, tornou-se também um símbolo da coragem e da resistência.
Neste momento, e utilizando uma síntese feita pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), temos, para um período de cinco anos, “um bispo na prisão, 37 padres exilados [mais um bispo também exilado, se contarmos o caso de Silvio Báez], 32 religiosas expulsas do país, confisco de, pelo menos, sete edifícios da Igreja, nomeadamente um convento, e encerramento de meios de comunicação católicos, rádios e televisão. No total foram 529 ataques do regime liderado por Daniel Ortega à Igreja desde abril de 2018”.